Em que crê um cristão reformado?
Postado por André Aloísio
Muitos
irmãos em Cristo devem ter percebido que me identifico sempre como um
"cristão reformado", apesar de, logicamente, ser um evangélico.
Talvez alguns já indagaram a si próprios sobre o que significa essa expressão,
porém nunca tiveram coragem de perguntar. Escrevo este artigo com o objetivo de
satisfazer a curiosidade de todos aqueles que ficam com um nó na cabeça sempre
que ouvem ou lêem essa expressão de minha parte.
Um
cristão reformado é alguém que crê na doutrina bíblica conforme expressa pela
Teologia Reformada, elaborada no tempo da Reforma Protestante. Como já foi dito
anteriormente, a Reforma foi o maior avivamento da história da igreja, tendo
como marco inicial a publicação das 95 Teses contra a venda de indulgências,
por Martinho Lutero, em 31 de outubro de 1517. Depois de Lutero surgiram muitos
outros reformadores, entre eles João Calvino. Enquanto Lutero foi o responsável
pela recuperação da doutrina da justificação pela fé, Calvino recuperou a
doutrina da soberania de Deus. E foi sobre essas doutrinas que se construiu a
chamada Teologia Reformada, que nada mais é do que uma sistematização da
doutrina bíblica.
Para que
a Teologia Reformada fique mais clara a todos, gostaria de fazer uma breve
confissão de fé sobre o que creio como cristão reformado. Não tenho a pretensão
de ser exaustivo nesta confissão, pois para isso já existem as confissões de fé
históricas. Desejo apenas apresentar a fé reformada de forma resumida para
aqueles que ainda não a conhecem.
Em primeiro lugar, creio como reformado que a Bíblia deve ser
interpretada seguindo o modelo histórico-gramatical. Isto significa que, por ser um livro inspirado pelo
Espírito Santo (II Tm.3.16), a Bíblia deve ser interpretada em espírito de
oração e na total dependência do Espírito, que ilumina nossa mente para que
possamos compreender seu verdadeiro significado (I Co.2.10-16). Porém, como a
Bíblia também é um livro humano, no sentido de que foi escrita por seres
humanos usados por Deus (II Pe.1.21), devemos interpretá-la usando regras de
interpretação, a que damos o nome de Hermenêutica Bíblica. Essa interpretação é
histórico-gramatical porque deve levar em consideração o contexto histórico em
que a passagem analisada foi escrita (autor, destinarários, etc) e também o
contexto gramatical no qual está inserida (tipo de literatura, versículos
anteriores e posteriores, etc).
Neste
ponto discordo dos neo-pentecostais, que muitas vezes interpretam a Bíblia
alegoricamente, atribuindo um significado simbólico ou espiritual diferente do
significado pretendido pelo escritor original do texto. Também discordo dos
dispensacionalistas que, sob o pretexto de interpretarem a Bíblia literalmente,
acabam pegando as passagens em seu sentido literal mesmo em escritos poéticos e
proféticos, cheios de símbolos e figuras, chegando a interpretações
precipitadas sobre o texto bíblico.
Em segundo lugar, creio como reformado na justificação pela fé. A justificação é um ato legal, no qual Deus declara que o
pecador é justo (Rm.3.22-26; 4.5), não por alguma obediência ou boa obra dele
próprio (Ef.2.8), nem por algo operado nele pelo próprio Deus, mas somente por
causa da obediência perfeita de Cristo à lei (Rm.5.18-19). Essa justificação é
composta de dois processos: o negativo, que consiste no perdão de pecados
(Rm.4.6-8), e o positivo, que consiste na imputação da justiça de Cristo (II
Co.5.21). O pecador é justificado somente pela fé (Rm.3.28).
Neste
ponto discordo de diversas visões sobre a justificação pela fé. Discordo dos
católicos, que crêem que a justificação é uma mudança moral do pecador, uma
infusão de justiça (e não imputação), confundindo justificação com
santificação, e fazendo, assim, com que ela dependa não apenas da fé, mas
também das boas obras (Rm.4.1-5). Discordo de muitos dispensacionalistas, que
freqüentemente negam que a justificação consista também da imputação da justiça
de Cristo, fazendo ela consistir apenas em perdão de pecados, e considerando a
fé como sendo, ela própria, a justiça que vem de Deus. Discordo também daqueles
que ensinam que no Antigo Testamento a justificação era pela obediência à lei,
pois as Escrituras são muito claras em afirmar que o homem nunca foi
justificado pela lei (Rm.3.20), e a fé sempre foi a condição para justificação,
mesmo no Antigo Testamento (Rm.4.3).
Em terceiro lugar, creio como reformado na soberania de Deus. Por soberania de Deus deseja-se mostrar o controle
absoluto de Deus sobre toda Sua criação (Mt.6.26; 10.29), e todos os
acontecimentos passados, presentes e futuros, sendo Ele o Senhor da história
(Dn.4.35). Deus não é somente o Criador, é também o Preservador do Universo, sustentando
todas as coisas pela Palavra do Seu poder (Hb.1.3). Ele é quem determina tudo o
que acontece, Sua vontade é totalmente soberana (Is.46.10), inclusive sobre
nossas vontades (Fp.2.13). Logo, não existe, como muitos dizem, um
livre-arbítrio. Existe sim uma liberdade e responsabilidade humana, mas que é
limitada pela vontade soberana de Deus.
Nisto
discordo de diversos ramos cristãos, em diversos aspectos. Discordo daqueles
que crêem que a oração pode mudar a vontade de Deus, fazendo orações "determinatórias",
pois em Deus não há mudança, nem sombra de variação (Tg.1.17); nossas orações
são respondidas quando feitas segundo Sua vontade (Mt.6.10; I Jo.5.14) e mudam
apenas acontecimentos. Discordo daqueles que pensam que certas coisas acontecem
fora do controle de Deus, como catástrofes naturais, guerras ou o problema do
mal no mundo, pois tudo isso está em Seus planos e foi por Ele determinado,
como demonstram diversas passagens do Antigo e Novo Testamento (Gn.50.20;
Rm.8.28). Discordo também daqueles que pensam poder determinar o seu próprio
destino, como se o poder da vida ou da morte estivesse em suas próprias mãos
(Dt.32.39).
Em quarto lugar, creio como reformado na soberania de Deus
especificamente em relação à salvação(Rm.8.29-30).
Isso foi perfeitamente expresso num documento chamado Cânones de Dort,
elaborado entre 1618 e 1619, onde a salvação é apresentada em 5 pontos:
depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, chamada eficaz e
perseverança dos santos.
Depravação total significa
que o homem foi de tal forma afetado pelo pecado que é totalmente incapaz de se
salvar sozinho ou mesmo contribuir, por pouco que seja, nessa salvação
(Rm.3.9-20). A depravação total mostra que "todos pecaram e carecem da
glória de Deus" (Rm.3.23), que os pecadores estão "mortos em delitos
e pecados" (Ef.2.1) e que "todo aquele que comete pecado é escravo do
pecado" (Jo.8.34). Um morto espiritual não pode fazer nada para viver, e
um escravo não tem vontade própria. O poder para ressuscitá-lo espiritualmente
tem que vir de fora, e para ser livre precisa antes ser liberto pelo Filho
(Jo.8.36) . Por isso, ninguém pode escolher a Jesus por si próprio para ser
salvo, nem fazer uso de um tipo de livre-arbítrio para aceitar ou rejeitar a
salvação alcançada por Cristo.
Eleição incondicional significa
que Deus, somente pela Sua soberana vontade, escolheu desde toda a eternidade
(Ef.1.4) uma multidão de "todos os povos, tribos, línguas e nações"
(Ap.7.9) para serem salvos de seus pecados e herdarem a vida eterna. Porém, Ele
não escolheu a todos (Rm.9.13). Essa escolha não se baseou em nada de bom ou
que agradasse a Deus presente nos próprios pecadores , ou alguma fé que Ele
tivesse previsto pela Sua presciência (Rm.9.11); pelo contrário, foi totalmente
pela Sua maravilhosa graça que Ele os escolheu soberanamente, para o louvor da
Sua glória (Rm.9.14-18; Ef.1.5,6,11,12). Aqueles que não foram escolhidos estão
destinados à condenação eterna no inferno, sem que Deus seja culpado pelo seu
destino ou pelos seus pecados. Deus salva uns para demonstrar a Sua graça, e
condena outros para demonstrar Sua justiça (Rm.9.19-24). Outra coisa
interessante a se observar é que Deus não era obrigado a salvar ninguém de seus
pecados, nem deixaria de ser um Deus amoroso se não o fizesse. Logo, o fato de
Deus salvar uma multidão da humanidade por pura graça já é uma demonstração
infinita de amor e misericórdia, acima de toda comparação.
Expiação limitada significa
que o valor da morte de Cristo é absolutamente infinito e poderoso para perdoar
todos os pecados daqueles que Deus escolheu, e apenas desses (Is.53.11-12).
Dizer que Cristo morreu pelo mundo não significa que Ele morreu por todas as
pessoas do mundo, mas por pessoas de todas as partes do mundo (Jo.3.16; I
Jo.2.2). Logo, Cristo não morreu por todos os homens literalmente; apenas pelos
escolhidos de Deus, que são Suas ovelhas e Sua Igreja (Jo.10.11,15; 17.9;
Ef.5.5-27). Porém, essa expiação dá aos eleitos uma salvação eterna, pois,
perdoados de todos os seus pecados pelo sacrifício de Cristo, e tendo sido
imputada a eles a justiça de Cristo, eles já não podem ser condenados; eles
tem, agora, a vida eterna (Jo.5.24).
Chamada eficaz nos
fala sobre como Deus salva os Seus escolhidos. Deus usa a pregação do evangelho
como meio de chamar os eleitos para Si mesmo (Rm.10.14-17). O evangelho deve
ser pregado a todas as pessoas (Mc.16.15), pois não sabemos quem Deus escolheu,
e a Palavra se tornará eficaz na vida daqueles que foram eleitos antes da
fundação do mundo (At.13.48). O Espírito Santo irá agir na vida dos eleitos,
operando a regeneração (ou novo nascimento- Jo.3.3-8) pela Palavra (I Pe.1.23),
tornando-os dispostos a responderem positivamente ao convite do evangelho
(At.16.14). É nesse momento que os eleitos recebem a capacidade de
"escolher a Deus" e receber a Cristo (Jo.6.65), arrependendo-se de
seus pecados e tendo fé em Cristo para salvação. Tanto o arrependimento como a
fé são dons de Deus, dados no momento da regeneração (At.5.31; 11.18; Ef.2.8;
Fp.1.29; II Tm.2.25). Por isso, ninguém deve se achar melhor que os outros por
ter se arrependido ou ter tido fé, porque essa capacidade é algo sobrenatural
dado por Deus. Dizer que essa chamada aos eleitos é eficaz significa que é
impossível a um eleito resistir ao convite do Espírito Santo, pelo evangelho,
no seu coração (Is.43.13).
Perseverança dos santos significa
que aqueles que foram eleitos por Deus, desde o dia em que foram salvos, não
poderão mais perder essa salvação (Jo.6.39; Rm.8.30; Fp.1.6). Como Cristo
morreu por todos os seus pecados - passados, presentes e futuros - nenhum
pecado pode, agora, levá-los à condenação: "Nenhuma condenação há para
aqueles que estão em Cristo" (Rm.8.1). Uma vez salvo, salvo para sempre.
Eles têm a vida eterna e, se é eterna, não pode acabar um dia (Jo.10.28-29).
Nada, agora, pode separá-los do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso
Senhor (Rm.8.35-39). Porém, isso não significa que os eleitos nunca mais
pecarão, porque isso certamente irá acontecer (I Jo.1.8-10). Mas como eles
foram regenerados, seu prazer agora não é mais o pecado, mas a santidade (I
Jo.3:6-10). Uma pessoa que viva em pecado e alegue ter sido salva deve ter sua
salvação seriamente questionada. Um cristão pode até cometer um pecado
terrível, porém, esse pecado certamente requererá uma disciplina da parte de
Deus, não com o objetivo de fazê-lo pagar pelo seu pecado, que ja foi pago na
cruz por Cristo, mas com a finalidade de aperfeiçoá-lo, para que seja
participante da santidade de Deus (Hb.12.5-13). Davi foi um exemplo dessa
disciplina de Deus, no caso de Bate-Seba (II Sm.11 e 12).
Em quinto lugar, creio como reformado que o "fim principal
do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre", como diz o Breve
Catecismo de Westminster. Logo, um reformado
tenta viver uma vida que glorifique a Deus em todos os aspectos, e entende que
Deus é adorado e glorificado em todas as áreas de sua vida: no trabalho, na
família, na sociedade, no lazer, na igreja, etc. "Quer comais, quer
bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus"
(I Co.10.31), como diz o apóstolo Paulo. A busca da glória de Deus e a adoração
cheia de amor que brota do coração de um cristão reformado é a aplicação
prática e conseqüência da doutrina da soberania de Deus. Pode-se perceber isso
no próprio Paulo que, depois de discorrer sobre o assunto da soberania de Deus
dos capítulos 9 a 11 de Romanos, encerra o assunto com adoração: "Ó
profundidade das riquezas, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus!
Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!
Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem
deu primeiro a ele, para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, por meio
dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente.
Amém." (Rm.11.33-36).
Este é
um pequeno resumo do que eu creio como reformado. Digo com segurança e
convicção que essa é a doutrina original dos evangélicos, mas que,
infelizmente, foi abandonada com o tempo. Tenho buscado um retorno ao evangelho
bíblico conforme ensinado pelos reformadores, nossos pais na fé, e creio que
esse é o único caminho para um verdadeiro avivamento na igreja evangélica
moderna. O segredo do avivamento não é inovar, mas olhar para o passado e
restaurar o que se perdeu: "Ponde-vos nos caminhos, e vede, e perguntai
pelas veredas antigas, qual é o bom caminho, e andai por ele; e achareis
descanso para as vossas almas." (Jr.6.16).
Minha
sincera oração é que Deus utilize este artigo para abrir os olhos de muitos
irmãos em Cristo às verdades esquecidas da Palavra de Deus, e que assim,
despertos para o evangelho eterno, possam ter seus corações em chamas por essas
mesmas verdades que custaram o sangue de nossos pais!
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