“O SENHOR me guarde de que eu faça
tal coisa ao meu senhor, isto é, que eu estenda a mão contra ele, pois é o
ungido do SENHOR” (1Samuel
24.6).
“A Bíblia diz: Ai daquele que tocar no ungido do Senhor!”
Quantas vezes você já ouviu essa afirmação, que soa como
uma espécie de imprecação e ameaça? Particularmente, já ouvi dezenas de vezes.
Já li outras tantas. Ela é usada com frequência por alguns pastores e líderes
que imaginam que o pastorado os torna incriticáveis. A ideia transmitida pelo
uso indiscriminado da expressão “sou um ungido do Senhor” é que a mesma é uma
espécie de “imunidade eclesiástica”, que concede ao indivíduo licença para
fazer o que quiser, agir como bem entender, sem a obrigação moral de prestar
contas a ninguém por seus atos e seus desmandos. Basta que você admoeste o
indivíduo por alguma coisa para imediatamente ele (ou alguém que o apoia em
suas loucuras megalomaníacas e narcisistas) diga: “A Bíblia diz: Ai daquele que
tocar no ungido do Senhor!”
Será que isso está correto? Será que os pastores são os
“ungidos do Senhor” e, por essa razão, são incriticáveis e intocáveis? Possuem
eles algum tipo de imunidade, que o impede de ser admoestado, exortado a se
arrepender de seus pecados? Precisamos examinar as Sagradas Escrituras, pois só
elas podem nos dar o correto entendimento da expressão.
A expressão no Antigo Testamento
O termo “ungido” (no hebraico, x;yvim' [Mashiah]
aparece 47 vezes nas Escrituras do Antigo Testamento, majoritariamente em 1 e
2Samuel (19 vezes) e em Salmos (9 vezes). Victor P. Hamilton afirma que, “mashiah é quase exclusivamente reservado
como sinônimo de ‘rei’ (melek, q.v.), como em textos poéticos, onde é
paralelo de ‘rei’ (1Sm 2.10; 2Sm 22.51; cf. Sl 2.2; 18.50 [51]; mas cf. Sl
28.8, onde é paralelo de ‘povo’). São notáveis as frases ‘o ungido do SENHOR’ (mashiah
YHWH) ou equivalentes, tal como ‘seu ungido’, as quais se referem a reis”.[i] É
importante compreender, como afirma Geerhardus Vos, que “a palavra sempre é
qualificada por um genitivo ou um sufixo ligada a ela: ‘o Messias de Yahweh’
(‘o Ungido do Senhor’), ou ‘meu Messias’ (‘meu Ungido’)”.[ii] Algumas
passagens podem ajudar a elucidar isso:
“Os que contendem com o SENHOR são
quebrantados; dos céus troveja contra eles. O SENHOR julga as extremidades da
terra, dá força ao seu rei e exalta o poder do seu ungido”(1Samuel 2.10).
No contexto da escolha de Saul como o primeiro rei de
Israel, o profeta Samuel, em seu discurso de despedida, diz: “Eis-me aqui, testemunhai contra
mim perante o SENHOR e perante o seu ungido: de quem tomei o boi? De quem tomei
o jumento? A quem defraudei? E das mãos de quem aceitei suborno para encobrir
com ele os meus olhos? E vo-lo restituirei[...] E ele lhes disse: O SENHOR é
testemunha contra vós outros, e o seu ungido é, hoje, testemunha de que nada
tendes achado nas minhas mãos. E o povo confirmou: Deus é testemunha" (1Samuel 12.3,5).
Por ocasião da unção de Davi como rei de Israel, Samuel
imaginou que Eliabe fosse o ungido do Senhor: “Sucedeu
que, entrando eles, viu a Eliabe e disse consigo: Certamente, está perante o
SENHOR o seu ungido” (1Samuel
16.6).
“No presente sou fraco, embora ungido
rei...” (2Samuel 3.39a).
“Então, respondeu Abisai, filho de
Zeruia, e disse: Não morreria, pois, Simei por isto, havendo amaldiçoado ao
ungido do SENHOR?” (2Samuel
19.21).
“É ele quem dá vitórias ao seu rei e
usa de benignidade para com o seu ungido, com Davi e sua posteridade, para
sempre” (2Samuel 22.51).
Todas as passagens listadas acima mostram, de forma
indubitável, que a figura do “ungido do Senhor” no Antigo Testamento era o rei
de Israel, o rei-pastor, responsável pela condução e cuidado das ovelhas de
Yahweh.
Outra passagem muito importante que atrela o conceito de
“ungido do Senhor” à figura do rei é 1Samuel 24.6: “O SENHOR me guarde de que eu faça
tal coisa ao meu senhor, isto é, que eu estenda a mão contra ele, pois é o
ungido do SENHOR” (cf. também
24.10; 26.9,11,16,23 e 2Samuel 1.14,16,21). O “ungido do SENHOR” a quem Davi se
refere é o rei Saul. Matthew Poole afirma que essa expressão significa que Saul
foi “ungido por Deus para o reino”.[iii] Isso
é representado pelo ato de ter sido ungido com óleo pelas mãos do profeta
Samuel: “Tomou Samuel um vaso
de azeite, e lho derramou sobre a cabeça, e o beijou, e disse: Não te ungiu,
porventura, o SENHOR por príncipe sobre a sua herança, o povo de Israel?” (1Samuel 10.1).
No Pentateuco o termo mashiah foi usado para se referir ao ofício
sacerdotal. “Moisés recebeu instruções para ungir, ordenar e consagrar Arão e
seus filhos, de modo que eles pudessem ser reconhecidos, autorizados e
qualificados para servir no sacerdócio”.[iv] Em
Levítico 16.32 está escrito: “Quem
for ungido e consagrado para oficiar como sacerdote no lugar de seu pai se fará
a expiação, havendo posto as vestes de linho, as vestes santas”. Outras
passagens que falam dos sacerdotes como “ungidos” são: Levítico 4.3,5,16;
6.20,22 e Números 35.25. Além disso, Êxodo 29 traz em detalhes as prescrições
divinas para a unção e consagração de Arão e seus filhos como sacerdotes.
Existe discussão quanto à unção para o ofício de profeta.
Existe discussão até mesmo sobre profeta não ser um ofício. Há quem defenda
essa posição. De acordo com essa visão, visto que os profetas não eram ungidos
no Antigo Testamento, eles não podem ser considerados como detentores de um
ofício, mas sim de uma função. Essa posição é seriamente desafiada por Gerard
van Groningen, que acertadamente diz:
Pela falta de prova bíblica não se deve concluir que os
profetas não eram ungidos, isto é, designados, separados, autorizados e
capacitados para seu trabalho. O fato de não haver relato de um rito de unção
prescrito não significa a inexistência de um rito. O fato de haver referência à
unção de profetas leva-nos à suposição de que um rito poderia ter sido
conhecido, mesmo que não fosse praticado sempre da mesma forma.
Os profetas eram considerados ungidos, como claramente inferimos
das ordens de não “tocar” os ungidos de Deus e de não “maltratar” seus profetas
(Sl 105.15 e 1Cr 16.22 – paralelismo sintético). As referências são aos
patriarcas. Não se sabe como e quando eles foram ungidos, mas os patriarcas
eram profetas, servos ungidos de Deus. O fato de o Senhor mandar Elias ungir
Eliseu (1Rs 19.16) certamente significava que os homens foram feitos cônscios
de sua designação, consagração, autoridade e capacitação para um ofício.[v]
Além disso, a passagem de Isaías 61.1-3 fala exatamente da
unção de um profeta: “O
Espírito do SENHOR Deus está sobre mim, porque o SENHOR me ungiu para pregar
boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a
proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados; a apregoar
o ano aceitável do SENHOR e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos
os que choram e a pôr sobre os que em Sião estão de luto uma coroa em vez de cinzas,
óleo de alegria, em vez de pranto, veste de louvor, em vez de espírito
angustiado; a fim de que se chamem carvalhos de justiça, plantados pelo SENHOR
para a sua glória”. Gerard van Groningen afirma que, “não é descrito o
ritual da unção, mas há referência a ele e o resultado é claramente expresso”.[vi]
Para quem os três ofícios e a
expressão “ungido do Senhor” apontam?
Como foi atestado pelo Antigo Testamento, os “ungidos do
Senhor” eram homens escolhidos pelo Senhor para desempenharem os ofícios de
rei, profeta e sacerdote. Além desse fato, dois homens, a saber, Moisés e
Samuel, desempenharam os três ofícios simultaneamente. Moisés serviu como
profeta, transmitindo a vontade de Deus ao seu povo, como sacerdote que oficiou
a consagração de Arão e seus filhos e como o líder (governante).[vii] Samuel,
semelhantemente, era um profeta, um sacerdote que oferecia sacrifícios a Deus e
um juiz, alguém encarregado de governar o povo. Mais uma vez, Gerard van
Groningen faz um excelente comentário sobre a interrelação dos três ofícios: “É
fora de dúvida que os três ofícios deviam complementar-se entre si e cumprir
papéis que eram vitais para cada um dos outros dois. Este fato esclarece por
que os três ofícios eram cumpridos por homens designados como ‘ungidos do
Senhor’”.[viii]
Os três ofícios, profeta, sacerdote e rei, foram
desempenhados pelo Senhor Jesus Cristo. E, de fato, todos aqueles que, no
Antigo Testamento, desempenharam essas funções e, por essa razão, eram
conhecidos como os “ungidos do Senhor”, apontavam para Jesus Cristo. Todos os
profetas, sacerdotes e reis da antiga administração do Pacto eram tipos de
Jesus Cristo, prefiguravam o Messias, o Ungido de Deus. O Catecismo Maior de Westminster,
respondendo à pergunta 42[ix], diz o seguinte sobre o tríplice ofício de Cristo:
“O nosso Mediador foi chamado Cristo porque foi, acima de toda a medida, ungido
com o Espírito Santo; e assim separado e plenamente revestido com toda a autoridade e poder para
exercer as funções de profeta, sacerdote e rei da sua Igreja, tanto no
estado de sua humilhação, como no da sua exaltação”.[x] O
mesmo está expresso pela Confissão
de Fé de Westminster, no capítulo sobre “Cristo, o Mediador”: “I. Aprouve a
Deus, em seu eterno propósito, escolher e ordenar o Senhor Jesus, seu Filho
Unigênito, para ser o Mediador entre Deus e o homem, o Profeta, Sacerdote e Rei, o
cabeça e Salvador de sua Igreja, o Herdeiro de todas as coisas e o Juiz do
mundo”.[xi] William G. T. Shedd expõe as maneiras
como Cristo desempenhou os três ofícios da seguinte maneira:
Seu
ofício profético é ensinado nas seguintes passagens: “O SENHOR, teu Deus, te
suscitará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, semelhante a mim” (Dt
18.15,18; Atos 3.22); “O Espírito do SENHOR Deus está sobre mim, porque
o SENHOR me ungiu para pregar boas-novas” (Is 61.1; Lc 4.18). Seu ofício
sacerdotal é ensinado nas seguintes passagens: “Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedeque” (Sl 110.4; Hb 5.5-6); “Tendo, pois, a Jesus,
o Filho de Deus, como grande sumo sacerdote que penetrou os céus” (Hb 4.14-15).
Seu ofício real é ensinado nos seguintes textos: “o seu nome será: Maravilhoso
Conselheiro, Deus Forte, pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (Is 9.6-7); “Eu,
porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião” (Sl 2.6).[xii]
A afirmação de Turretin também é interessante:
Agora,
como todos os tipos relacionados com Cristo obtiveram o seu cumprimento nele,
Cristo deve apresentar a verdade desse tríplice ofício em si mesmo, mas muito
mais perfeitamente do que nos outros – não apenas em razão da conjugação destas
três partes (que nenhum homem poderia cumprir ao mesmo tempo, como já vimos),
mas também em virtude da eminência e dignidade, tanto do seu ofício como dos
seus dons.[xiii]
Conclusão
A conclusão à qual podemos chegar após o arrazoado feito
até aqui, é que todos aqueles que sob a economia do Antigo Testamento foram chamados
de “ungidos do Senhor” serviam como tipos de Jesus Cristo, ou seja, eles eram
prefigurações de Jesus, apontavam para o verdadeiro Messias, o verdadeiro
Ungido. Sendo assim, a expressão “ungido do Senhor” é claramente messiânica, e
todos aqueles que nos dias de hoje se apropriam de tal expressão estão, na
realidade, agindo com um maligno messianismo, colocando-se no mesmo patamar de
Jesus Cristo, exigindo das pessoas sob seus cuidados uma revência, uma
dignidade e honra que pertencem exclusivamente a Jesus, o Ungido do Senhor.
Além disso, esconder-se atrás da expressão “ungido do
Senhor” é, de certo modo, esposar o episcopado romanista. Aqueles que se
consideram como os intocáveis “ungidos do Senhor” dão a entender que possuem um
tipo de unção diferenciada, uma unção desconhecida e não possuída pelas pessoas
comuns, os membros da igreja, o que é algo falso e antibíblico. Pastores não
são “ungidos do Senhor” de maneira diferenciada. Eles não são Ungidos, Messias,
dotados de um tipo de “imunidade diplomática”. Vociferar: “A Bíblia diz: Ai
daquele que tocar no ungido do Senhor! Por isso, não me toque! Não queira ser
meu inimigo, pois o Senhor pesa a mão sobre todos aqueles que tocam nos seus
ungidos!”, é cometer um sério atentado contra a doutrina do sacerdócio
universal de todos os crentes.
O Novo Testamento apresenta uma expansão nesse conceito,
mostrando que todos aqueles que estão unidos a Jesus Cristo, o verdadeiro
Ungido do Senhor, são igualmente ungidos pelo Espírito Santo como profetas,
sacerdotes e reis. O apóstolo Pedro faz uma afirmação fantástica nesse sentido: “Vós, porém, sois raça eleita,
sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de
proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa
luz” (1Pedro 2.9). Os três
ofícios são mencionados por Pedro: “sacerdócio real” (ofícios sacerdotal e
real), e “a fim de proclamardes” (ofício profético). O apóstolo está falando de
todos os verdadeiros crentes. Todos eles são “sacerdócio real”. Todos têm o
dever de proclamar “as virtudes daqueles que vos chamou das trevas para a sua
maravilhosa luz”. Encerro com a correta afirmação de Geerhardus Vos: “O Rei
‘ungido’ e o povo ‘ungido’ estão intimamente relacionados. O caso paralelo da
atribuição da ‘filiação’ a ambos sugere a possibilidade da posse comum da
‘unção’ por parte de ambos. No Novo Testamento, a unção é concedida tanto a
Cristo como aos crentes”.[xiv]
Portanto,
ninguém pode dizer: “Sou um ungido do Senhor, e por isso, ninguém pode tocar em
mim!”, sem incorrer em grave falta.
[i] Victor P. Hamilton, In: R. Laird Harris, Gleason L.
Archer, Jr., e Bruce K Waltke. Dicionário
Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São
Paulo: Vida Nova, 2001. p. 885.
[ii] Geerhardus Vos. The
Self-Disclosure of Jesus: The Modern debate about the Messianic Consciousness.
Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 2002. p. 105.
[iii] Matthew Poole. A
Commentary On the Holy Bible: Genesis-Job. Vol. 1. Grand Rapids, MI:
Hendrickson Publishers, 2010. p. 572.
[iv] Gerard van Groningen. Revelação Messiânica no Antigo
Testamento. São Paulo:
Cultura Cristã, 2004. p. 29.
[v] Ibid. p. 30.
[vi] Ibid. p. 31.
[vii] O teólogo genebrino Francis Turretin
afirma que, “nunca conhecemos ninguém que, perfeitamente, cumpriu os três
ofícios. Eles estavam reservados para Cristo”. Cf. Francis Turretin.Institutes
of Elenctic Theology. Vol. 2. Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 1994.
p. 392. Todavia, a discordância pode ser entendida quando leva-se em
consideração que Turretin tem em mente o ofício real em si mesmo, ao passo que
menciono Moisés e Samuel não como reis, mas simplesmente como homens que
exerceram o governo entre o povo de Irael.
[viii] Ibid.
[ix] Pergunta 42: Por que foi o nosso
Mediador chamado Cristo?
[x] O CATECISMO MAIOR DE WESTMINSTER. São
Paulo: Cultura Cristã, 2002. p. 52. Ênfase acrescentada.
[xi] A CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER. São
Paulo: Cultura Cristã, 2003. pp. 73-74.
[xiv] Geerhardus Vos. The
Self-Disclosure of Jesus: The Modern debate about the Messianic Consciousness.
p. 107.
FONTE
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