O CÂNON DO NOVO
TESTAMENTO
Ao Novo
Testamento pertencem os 27 livros que foram analisados nesta Introdução.
Desde o século IV é costume nas igrejas cristãs de todas as denominações chamar
essa lista de escritos de cânon do Novo Testamento.
A palavra grega kanon significa
vara, cano. Disso surgiu o significado régua ou medida-padrão dos carpinteiros.
No sentido derivado, a palavra foi depois aplicada para se designar uma regra
ou regulamento.
Quando no século
IV a palavra passou a ser adotada para os escritos do Novo Testamento,
tratava-se do padrão segundo o qual os escritos eram universalmente
reconhecidos como apostólicos e poderiam, portanto, ser lidos nos cultos em
todas as igrejas cristãs.
Hoje o termo é
usado para designar a diferença entre os escritos que são fundamento para a fé,
o ensino e a vida das igrejas cristãs, e os outros escritos dos primeiros
tempos que servem simplesmente como documentos da história da igreja ou da
história das heresias.
Em seguida queremos descrever os diversos
estágios da formação do cânon e apresentar os critérios usados pela igreja
antiga nas suas decisões. A última questão trata da importância que esse cânon
concluído no século IV tem para as igrejas cristãs de hoje.
Sobre O Surgimento Do Cânon Do Novo
Testamento
Já nos escritos
dos pais da igreja Clemente de Roma, Inácio, Policarpo e Papias descobrimos que
nas suas discussões se baseavam não somente no Senhor Jesus Cristo, mas também
nas Escrituras. Com Escrituras denotavam não somente o AT, mas também os
evangelhos. Os escritos do apóstolo Paulo também eram aceitos como autoridade
reconhecida. Mas não havia nenhum indício de um cânon definido naquela época.
Mesmo assim, já deve ter existido uma coletânea das cartas de Paulo, pois em 1
Clemente (95 d.C.) já há citações de Romanos e de 1 Coríntios. Possivelmente as
cartas de Paulo já foram reunidas antes disso, como parece indicar a observação
em 2Pedro 3.16.
Temos
informações um pouco mais exatas nos anos 130-140 d.C. por meio de Policarpo e
Clemente de Alexandria, que nos seus escritos fazem menção dos evangelhos de
Mateus e de Lucas. Isso poderia ser uma indicação de que na metade do século II
já havia uma coletânea dos quatro evangelhos, que vinham sendo cada vez mais
reconhecidos nas igrejas da antiguidade, enquanto também evangelhos apócrifos e
tradições orais sobre Jesus eram difundidos.
A primeira
definição dos escritos-padrão para a igreja cristã vem de Marcion em 145 d.C.
Ele era “paulinista” e por isso só reconhecia 10 cartas de Paulo (excluía as
cartas pastorais) e uma versão do evangelho de Lucas purificada das influências
vétero-testamentárias e judaizantes.
No final do
século II começa a se delinear o cânon do Novo Testamento nos escritos de
Irineu, Tertuliano e Clemente de Alexandria. É um cânon em formação mas ainda
não concluído, ao qual pertencem os quatro Evangelhos, Atos dos Apóstolos, 13
cartas de Paulo, 1 Pedro e 1 João, como também o Apocalipse de João.
Nessa época
surge também o documento que denominamos de Cânon Muratóri, segundo o
bibliotecário L. A. Muratóri, que descobriu o fragmento em 1740 na Bibliotheca
Ambrosiana de Mailand. Um desconhecido preparou um registro oficial das
escrituras que deveriam ser aceitas e lidas publicamente na Igreja Católica.
Infelizmente falta o início. Começa com as últimas palavras de Marcos e denota
o Evangelho de Lucas como o terceiro e o de João como o quarto evangelho.
Evidentemente o trecho sobre Mateus como primeiro evangelho se perdeu. Se
comparamos a lista de livros desse Cânon com a lista do Novo Testamento de
hoje, notamos que faltam 1 Pedro, Hebreus, Tiago e 3 João. Sobressai o fato de
que falta 1 Pedro, que em geral era aceito naquela época. Além disso contém o
escrito “Sapientia Salomonis” e o Apocalipse de Pedro, com a observação “… que
alguns de nós não querem ler na igreja”.
De grande valor
nesse Cânon é que descobrimos os critérios usados para a delimitação do cânon.
Um critério era a autoria apostólica; Marcos e Lucas são reconhecidos como
discípulos de apóstolos e, por isso, aceitos. Hebreus não é aceito porque a
autoria paulina é questionada. O que importa, portanto, é a proximidade com a
revelação trazida ao mundo por meio de Jesus Cristo, que é garantida pelo
testemunho ocular. Além disso, outro critério era se o livro era usado e aceito
por todas as igrejas; mais tarde esse critério foi formulado explicitamente
dessa forma por Orígenes. É surpreendente notar a importância que a igreja do
século II dava ao aspecto de Jesus Cristo estar no centro da mensagem do
escrito em consideração.
Em
relação aos evangelhos, a formação do cânon estava concluída no final do século
II. Nas cartas dos apóstolos há clareza em relação às cartas de Paulo. A
discussão em relação às outras cartas ainda permanece aberta nessa época.
O processo da formação do cânon só
chega ao seu final no século IV. A igreja do oriente declara como canônicos,
por meio da 39ª carta pascal de Atanásio (367 d.C.), os 27 livros que hoje
temos no Novo Testamento. Nessa carta, o termo cânon é usado pela primeira vez
para denominar os critérios para os livros aceitos pela igreja. Pela
intervenção de Jerônimo, essa definição é aceita pela igreja do ocidente nos
sínodos de Hipona Régia (393) e de Cartago (397), ocasião em que a carta aos
Hebreus não é colocada entre as cartas de Paulo.
Foram necessários alguns séculos
para que se chegasse à definição do cânon que conhecemos hoje. Isso pode ser
estranho, mas corresponde ao caráter da Bíblia, a Palavra de Deus transmitida a
nós por meio de palavras humanas (2Pe 1.21).
2. Critérios para a formação do
cânon
Quem autorizou a igreja antiga a
definir quais escritos seriam Escrituras Sagradas? A apresentação da formação
do cânon já mostrou que não se tratou da ação arbitrária e autoritária de
alguns concílios ou até do resultado de um conflito de poder da igreja antiga.
O que aconteceu foi que, por meio de um processo de várias centenas de anos, se
cristalizou em consenso de toda a igreja cristã o que deveria estar no cânon e
o que não poderia. Esse é um fenômeno admirável, se levarmos em conta as
discussões teológicas dificílimas que estavam sendo travadas na mesma época. Por isso, creio que D. A. Carson, D.
J. Moo e L. Morris têm razão quando dizem: “It is not so much that the church
selected the canon as that the canon selected itself.” (Não foi a igreja
que fez a seleção dos livros que iriam para o cânon e dos que não, mas o cânon
fez a sua própria seleção). No decorrer dos séculos se impuseram aqueles
escritos que formavam a base da fé cristã. Devemos isso sobretudo à ação do
Espírito Santo, de que Jesus já dissera que conduziria os discípulos a toda a
verdade (Jo 16.13).
Quais critérios foram fundamentais
nesse processo? A formação da opinião da igreja antiga deixa transparecer três
critérios.
2.1 O critério da originalidade
O prólogo de 1 João explica o que
isso quer dizer: “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos
visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos e as nossas mãos
apalparam, com respeito ao Verbo da vida (e a vida se manifestou, e nós a temos
visto, e dela damos testemunho e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava
com o Pai e nos foi manifestada), o que temos visto e ouvido anunciamos também
a vós outros, para que vós igualmente mantenhais comunhão conosco. Ora, a nossa
comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo (1Jo 1.1-3). A revelação de
Deus em Jesus não veio diretamente a nós. Nós dependemos do relato de
testemunhas oculares. Elas fazem a ponte entre a revelação ocorrida e as
gerações futuras. O relato das testemunhas oculares é único e insubstituível,
porque a revelação de Deus aconteceu na história.
Por isso a igreja antiga adotou o
critério da originalidade e com isso queria dizer a autoria apostólica. Além
desse círculo de testemunhas oculares, só foram aceitos o apóstolo Paulo e
alguns discípulos de apóstolos.
Entretanto, a simples indicação do
autor não era suficiente. Muitos escritos que indicaram um apóstolo como seu
autor foram rejeitados. A verificação do conteúdo aguçou a percepção da
diferença entre o que era apostólico e o que era apócrifo. Todo aquele que lê
os evangelhos apócrifos já se convence disso.
2.2 A concordância com os
fundamentos da fé (a ortodoxia)
Os primeiros séculos da igreja
cristã são marcados pela batalha a favor da verdade das afirmações teológicas.
As igrejas ameaçadas pelos ensinos dos falsos mestres (gnosticismo, Marcion)
precisavam de uma regra de fé (grego: kanon tes pisteos; latim: regula
fidei), por meio da qual pudessem diferenciar o “verdadeiro” do “falso”. Os
movimentos pela profissão de fé são evidências disso.
Por isso não devemos nos admirar do
fato de que, na formação do cânon do Novo Testamento, a pergunta pela
concordância com a regra de fé, ou seja, com a fé cristã reconhecida como
ortodoxa pela maioria, tenha tido papel fundamental. O Evangelho de Tomé e o
Evangelho Veritatis não foram aceitos porque são influenciados pelo
gnosticismo.
2.3 Reconhecimento geral
E em terceiro lugar, somente se
impuseram os escritos que durante os primeiros séculos tiveram aceitação geral
nas igrejas. Na formação do cânon, o que importava não era a imposição de
alguns grupos. O cânon do Novo Testamento deveria servir de fundamento para
todo o cristianismo. A consideração pelasdúvidas e objeções fez com que se
tornasse um processo longo de formação da opinião geral e foi marcado por muita
paciência e respeito pelas opiniões uns dos outros.
3. O significado do cânon do
Novo Testamento hoje
Na consideração do longo processo
da formação do cânon surgem muitas perguntas: Por que a igreja de Jesus Cristo
necessita de um cânon dos escritos autorizados? A igreja não está ligada
diretamente ao seu Senhor por meio do Espírito Santo, que ainda hoje quer dirigir
a igreja a toda a verdade?
Se o processo da formação do cânon
levou tantos anos, por que deveria ter terminado com as decisões do século IV?
Não seria necessário testar os 27 escritos novamente nos dias de hoje para
verificar se são de fato canônicos?
Será o cânon dos escritos do Novo
Testamento uma real ajuda para evitar desvios nos ensinos da igreja cristã? O
ponto crucial não está na interpretação desses escritos?
Em uma Introdução e Síntese como
esta, essas perguntas só podem receber um tratamento muito breve.
Se a igreja de Jesus Cristo não
tivesse um cânon dos escritos aceitos, os visionários e profetas não poderiam
ser provados. Qualquer um pode fazer a reivindicação de que está falando em
nome do Espírito Santo. Os 27 livros canônicos do Novo Testamento têm
comprovado serem um padrão confiável de discernimento entre revelação de Deus e
inspiração humana por quase 2.000 anos de história da igreja. O Espírito de
Deus que fala hoje é o mesmo Espírito que dirigiu os autores desses livros e
que cuidou de todo o processo de formação do cânon. Ele faz a ligação entre a
nossa fé e vida e aquilo que Deus, de uma vez por todas, nos revelou por meio
de Jesus Cristo.
G. Maier se posicionou contra a
tentativa de redefinir o cânon, na polêmica com E. Käsemann. Maier rejeita a
tentativa de se redefinir os limites do cânon com os seguintes argumentos: “Em
vista da situação descrita, exegetas e teólogos buscam há mais de 200 anos o
cânon dentro do cânon, isto é, a palavra normativa de autoridade divina. Esse empreendimento
de 200 anos foi a pique, já que ninguém está em condições de definir o cânon
dentro do cânon com convicção e clareza. Visto que cada um define o cânon
dentro do cânon de forma diferente e faz isso sem muita fundamentação (leia-se,
por livre escolha), subjetividade desmesurada acabe se tornando autoridade
sobre aquilo que deve possuir autoridade divina”. Por esses motivo, eu também
considero desnecessária a discussão sobre os limites do cânon.
É verdade que muito depende da
interpretação dos escritos canônicos. Por isso a hermenêutica merece atenção
especial. Entretanto, ela seria impossível, se não estivesse definido antes
pelo menos o que precisa ser interpretado. O cânon do Novo Testamento ajuda
também a verificar se os métodos da hermenêutica são apropriados ou não.
Por isso só podemos agradecer a
Deus porque mesmo nas igrejas cristãs tão divididas ainda temos hoje um cânon
de 27 livros que servem de fundamento para a fé cristã. O objetivo desta Síntese
e Introdução é facilitar a compreensão desses livros. Por isso foi dada
tanta atenção à questão da autoria, porque a originalidade, ou seja, a
proximidade com a revelação, foi um critério decisivo para a confirmação dos
livros como canônicos.
4. Bibliografia sobre a história
do cânon
D. A. Carson & D. J. Moo & L. Morris, Introduction, p.
487-500; W. G. Kümmel, Einleitung, p. 420-451; E. Lohse, Entstehung,
p. 12-17; W. Popkes, “Kanon” (NT), GrBL, vol. 2, p. 760-764; A. Wikenhauser
& J. Schmid, Einleitung, p. 23-64.
BIBLIOGRAFIA
Visto que esta Síntese e
Introdução do Novo Testamento foi preparada de forma breve e objetiva para
servir de livro texto, a bibliografia se limita ao estritamente necessário.
Mais indicações para a literatura podem ser achadas em introduções mais
abrangentes.
1. Introduções ao NT
Don A. Carson, Douglas J.
Moo e Leon Morris, Introdução ao Novo Testamento, Vida Nova, 1997.
Frédéric Godet, Einleitung in das Neue Testament,
Hannover, vol. I, 1894; vol. II, 1905.
Donald Guthrie, New Testament introduction, Downers Grove,
USA, 3 ed. 1970.
Werner Georg Kümmel, Einleitung in das Neue Testament,
Heidelberg, 21 ed. 1983.
Eduard Lohse, Die Entstehung des Neuen
Testaments, Stuttgart, 5 ed. 1990.
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