Entrevista sobre Cessacionismo e Continuismo
Com Augustus Nicodemus Lopes
Fiquei
imaginando o que eu diria se fosse entrevistado sobre a cessação e a
continuação dos dons espirituais mencionados na Bíblia, e daí nasceu esta
sessão fictícia de perguntas e respostas. As perguntas estão em negrito e itálico.
Pastor
Augustus, os dons espirituais cessaram?
Primeiro
é necessário definir a que dons nos referimos. Acredito que o Espírito continua
até hoje a conceder à Igreja a maioria dos dons mencionados na Bíblia. Mas,
tenho a impressão que outros dons foram concedidos somente por um tempo a
determinadas pessoas, para atender aos propósitos de Deus para aquela época.
Estes não estariam mais disponíveis hoje. Por isto, é necessário, antes de qualquer
coisa, esclarecer a que dons estamos nos referindo quando dizemos que os dons
cessaram ou que continuam.
Outra
coisa a ser levada em consideração é que, de acordo com a história bíblica,
Deus não agiu sempre da mesma maneira em todas as épocas. Há muitas ações
miraculosas e sobrenaturais que ocorreram somente uma vez ou durante um tempo
específico e não foram repetidas. Portanto, por princípio, devemos admitir que
Deus é soberano para agir de diferentes maneiras através da história, e que
dentro desta ação, ele concede diferentes dons a diferentes pessoas em
diferentes épocas. Assim, não podemos nem restringir a ocorrência de
determinados dons somente a um período da história e nem requerer que todos os
dons terão necessariamente de ocorrer em todos estes períodos.
Então,
você não se definiria como um cessacionista?
Se por
cessacionista você quer dizer uma pessoa que não acredita que o Espírito Santo
conceda dons espirituais à sua Igreja nos dias de hoje, é claro que não sou
cessacionista. Se, por outro lado, um continuísta seria alguém que acredita que
todos os dons espirituais mencionados na Bíblia estão disponíveis hoje à
Igreja, bastando ter fé para recebê-los, é claro que também não sou um
continuísta. Creio num caminho intermediário para o qual ainda não achei um
nome. Não posso ser chamado de cessacionista e nem de continuísta, pois creio
que alguns dons continuam como eram no Novo
Testamento, outros cessaram e outros continuam apenas em parte.
Bem, a
discussão moderna gira mais em torno dos dons chamados sobrenaturais, como
curas, línguas, profecias... se Deus é o mesmo hoje, ontem e eternamente, estes
dons não estariam disponíveis hoje, como estavam na época dos apóstolos?
Poderíamos
perfeitamente aplicar a estes dons e outros o princípio acima, de que Deus age
de maneiras diferentes em épocas diferentes. Não podemos confundir a imutabilidade de Deus - que significa que ele
não muda em seu ser e seus atributos - com a “mesmice” de Deus, que
significa que ele sempre age da mesma forma. Teoricamente, ele poderia ter
concedido os dons relacionados com curas, línguas e profecias a algumas pessoas
durante o período apostólico e uma vez cessado aquele período, suspendido a
atuação dos mesmos. Não vejo em que admitir isto afeta a imutabilidade de Deus ou
diminui o seu poder e sua glória. Querer que Deus sempre atue da mesma maneira,
isto sim, engessa Deus num padrão rígido e não admite que Ele tenha maneiras
diferentes de agir em épocas diferentes para atingir seus propósitos.
Mas o
que havia de tão especial no período apostólico para Deus conceder estes dons
sobrenaturais?
Foi o
período de transição entre a antiga e a nova alianças. Teve a ver com a vinda
de Jesus Cristo ao mundo e o cumprimento de todas as promessas que Deus havia
feito a seu povo pelos profetas de Israel. Foi a inauguração dos últimos dias,
do fim dos séculos, da última hora e do fim dos tempos. Foi a época em que o
Espirito prometido foi derramado. Deus levantou os Doze e Paulo para através
deles explicar e registrar estes fatos no Novo Testamento. Era necessário,
portanto, que o período mais importante da história da redenção fosse marcado
por sinais, prodígios e maravilhas feitos por pessoas extraordinárias como os
apóstolos e seus associados. Era preciso deixar claro que era Deus quem estava
por detrás daqueles acontecimentos e da mudança da aliança. Uma parte dos dons
mencionados no Novo Testamento está relacionada diretamente com este período e
com os apóstolos, como o dom de curar e fazer milagres e a profecia como
veículo de novas revelações. O dom de línguas, aparentemente, estava também
associado àquela época, como sinal externo da chegada do Espírito Santo aos
diferentes grupos que compunham a Igreja em seu início (judeus, samaritanos,
gentios e discípulos de João Batista). Mas, parece que ele servia a outros
propósitos além deste mencionado.
A
questão é que estes dons aparecem em algumas das listas de dons espirituais do
Novo Testamento como ferramentas do Espírito dadas a todos os crentes para
edificar a igreja de Cristo. E agora?
Não
vejo dificuldades. Estas listas aparecem em Efésios 4, Romanos 12, 1Coríntios
12 (2 listas) e 1Pedro 4. O que precisamos é definir com mais precisão o que
significam cada um destes dons. O que significa, por exemplo, o dom de
profetizar, que aparece nestas listas? Os crentes que tinham o dom de
profetizar nas igrejas cristãs eram profetas iguais a Isaías e Jeremias, que
foram capazes de predizer o futuro de Israel e das nações com incrível
precisão? Ou será que os profetas cristãos se limitavam a edificar, exortar,
consolar e instruir as igrejas, como Paulo diz em 1Coríntios 11:3 e 31? E o que
significa o dom de curar e de realizar milagres? Por que só encontramos este
dom associado ao ministério dos apóstolos? E por falar nisto, o que significa “apóstolo”
na lista de Efésios 4? O termo pode significar tão somente enviados,
missionários, sem qualquer relação com os Doze e Paulo. Infelizmente as pessoas
não levam em conta que existem determinados aspectos da função do profeta, do
ofício do apóstolo e mesmo do dom de línguas, os quais parecem estar
relacionados somente àquela época. Se levarmos em conta estas coisas, podemos
até dizer que todos os dons continuam hoje, mas que alguns aspectos ou
atributos deles cessaram após o período dos apóstolos.
E qual
seria então o critério para dizermos quais os dons que permanecem para os dias
de hoje e quais os que cessaram?
Acredito
que a regra de ouro é esta: todos os dons que foram veículos de novas
revelações ou que estavam ligados diretamente aos instrumentos das revelações,
que foram os apóstolos, cessaram com a morte deles. Ilustrando, o dom de
profecia continua hoje, conforme entendo, mas somente enquanto exortação,
consolo, confrontação pela Palavra. Já o aspecto revelatório da profecia que
vemos, por exemplo, em João ao escrever Apocalipse, ou em Paulo e Pedro ao
prever como será o futuro, a vinda de Cristo, a ressurreição dos mortos, etc.,
isso certamente não faz parte da profecia hoje. Já cessou.
Da
mesma forma o dom do apostolado. Se entendermos apóstolo como missionário,
enviado das igrejas para pregar o Evangelho aos povos (é este o sentido básico
do termo em grego), não vejo problemas em dizer que ainda hoje temos apóstolos
entre nós, que são os missionários que vão desbravar campos ainda não atingidos
pelo Evangelho. Mas, certamente não existem mais apóstolos no sentido dos Doze
e Paulo, que viram o Senhor Jesus ressurreto, foram chamados diretamente por
Ele pessoalmente ou numa aparição após a ressurreição, e que receberam não
somente poderes extraordinários de curar e realizar milagres, como foram também
veículos da revelação divina, tendo profetizado acerca do futuro de Deus para
seu povo e o mundo. E mais, seus escritos às igrejas foram inspirados pelo
Espírito Santo, de forma que são infalíveis e inerrantes, sendo a própria
Palavra de Deus. Obviamente, nenhum dos que se intitulam de apóstolo hoje tem
estas credenciais. Portanto, não podem ser considerados apóstolos como Pedro,
Tiago, João e Paulo. Este é um dos dons que permanece hoje somente em parte.
Por
este critério o dom de línguas teria cessado também?
Não
necessariamente, pois, até onde eu entendo, ele não era revelacional, isto é,
não era veículo de novas revelações, como a profecia. Acredito que o relato de
Atos e de 1Coríntios 14 nos dão informações suficientes de que o conteúdo das
línguas era o louvor a Deus (Atos 2:11; 10:46). O dom consistia na capacidade
de louvar e exaltar as grandezas de Deus num idioma que a pessoa desconhecia, e
que tinha de se traduzido para a edificação da igreja. Portanto, teoricamente,
este dom não precisaria ter cessado pois não era revelacional. Todavia, temos
indícios significativos da história da igreja de que ele cessou após o período
apostólico. Na eventualidade de uma ocorrência genuína deste dom hoje,
esperaríamos que fosse de acordo com as regras bíblicas de 1Coríntios 14: dois
ou três falando, em sequência, e com interpretação. Como normalmente não é este
o caso nas igrejas que dizem ter este dom, continuo tendo dúvidas de que o que
está acontecendo nelas é a manifestação do genuíno dom de línguas. Mas, em
tese, estou aberto para a ocorrência do dom genuíno.
Mas,
então, isto quer dizer que os crentes que falam em línguas são mentirosos ou
estão sendo influenciados pelo diabo?
Claro
que não. Seria uma temeridade afirmar este tipo de coisa. Prefiro pensar que em
boa parte das ocorrências são irmãos em Cristo sinceros que pensam estar de
fato falando em línguas por terem sido ensinados desta forma dentro de
determinados ambientes. Eles foram ensinados que falar em línguas é balbuciar
palavras sem sentido num êxtase emocional. Há alguns que inclusive foram
ensinados por seus pastores a como fazer isto, tipo “relaxe a língua, forme uma
palavra desconhecida em sua mente e repita até que saia espontaneamente da sua
boca...”
Não
consigo perceber qual é o mal em se falar em línguas hoje nas igrejas. Qual o
problema?
Se as
línguas faladas não forem de Deus, a imitação delas deve trazer algum prejuízo
ou perigo de natureza espiritual. Não posso afirmar ao certo, mas imagino que
pode produzir arrogância, falsa espiritualidade, e abrir a porta para a atuação
de demônios ou da natureza pecaminosa do homem. Na verdade, estes perigos estão
presentes em qualquer manifestação que seja meramente humana, e não somente línguas.
Alguns
diriam que você nunca falou em línguas porque nunca foi realmente batizado com
o Espírito Santo...
Hehe,
eu sei, já me disseram isto na cara, num congresso de irmãos pentecostais onde
estive como visitante. Bom, a minha resposta é que acordo com Paulo todos os
crentes verdadeiros já foram batizados com o Espírito Santo (1Cor 12:13) mas
nem todos falam em línguas (1Cor 12:30). Se não for assim, terei de dizer que
os reformadores e os grandes missionários da história da igreja nunca foram batizados
com o Espírito Santo, pois nunca falaram em línguas. Todavia, se formos fazer
uma comparação, eles fizeram mais pelo Reino de Deus do que estes que hoje
insistem em dizer que as línguas são o sinal inequívoco do batismo com o
Espírito Santo...
Mudando
de assunto... Deus cura hoje?
Sem
dúvida alguma. Eu mesmo já fui curado por Deus. Todavia é preciso fazer a
diferença entre o dom de curar e as curas que Deus faz em resposta à oração.
Aqueles que tinham o dom de curar - e parece que estava restrito aos apóstolos
e seus associados - nunca falhavam. Cada vez que determinavam a cura, ela
acontecia. Não há caso registrado de alguém com dom de curar, como Paulo e
Pedro, terem comandado a cura que ela não tenha acontecido. E estamos falando
da cura de cegos, coxos, aleijados, surdos e mudos, muitos dos quais nem tinham
fé. E mesmo da ressurreição de mortos. Obviamente não apareceu depois dos
apóstolos ninguém na história da Igreja, até os dias de hoje, com este mesmo
poder. E estou falando de homens como Agostinho, Lutero, Calvino, Wesley,
Whitefield, Hudson Taylor, Spurgeon, Moody e outros homens de Deus, que não
podem ser acusados de não terem fé ou de serem carnais.
Isso
não quer dizer que Deus deixou de curar depois dos apóstolos. Ele cura sim, ao
responder as orações por cura quando quiser. E nem sempre ele responde
positivamente. Se fosse feita uma pesquisa, aposto que ela revelaria que existe
proporcionalmente o mesmo número de doentes entre aqueles que dizem acreditar
que o dom de curar existe hoje e aqueles que acham que já cessou. Isto é, vamos
encontrar nos leitos dos hospitais proporcionalmente o mesmo número de membros
doentes de igrejas que dizem ter o dom de curar e daquelas que não pensam
assim.
Jesus
disse certa feita que quem cresse nele faria os mesmos sinais que ele fez. Esta
promessa é verdadeira ou não?
O que
Jesus disse foi que eles fariam as mesmas obras. Ele não disse que fariam os
mesmos sinais (ver João 14:12). Embora o termo “obras” possa se referir aos
milagres dele, é mais provável que Cristo se referia à obra de evangelização e
conquista de almas, que foi efetivamente a única obra que os apóstolos fizeram
que era maior do que as realizadas por ele. Sobre isto, escrevi um post aqui no blog O
Tempora, O Mores, dando as razões exegéticas para esta interpretação. A
verdade é que nunca ninguém conseguiu superar os milagres de Jesus ao longo de
dois mil anos de história do Cristianismo.
E
quanto a sonhos e visões?
De
acordo com o autor da carta aos Hebreus, Deus de fato se revelou de maneira
extraordinária antes de Cristo, falando através dos profetas por meio de visões
e sonhos, conforme encontramos no Antigo Testamento. Com a vinda do Senhor
Jesus, que é a Palavra encarnada e portanto a última e maior revelação de Deus,
estes modos de revelação cessaram, à medida que os apóstolos e escritores no
Novo Testamento registraram de maneira infalível e definitiva esta última
revelação.
Não
digo que Deus não possa hoje se manifestar de maneira extraordinária a um
crente. Mas, então, seria o caso de uma experiência pessoal, que não pode ter
validade e utilidade pública e nem ser usada como meio para se impor alguma
prática ou doutrina aos demais. A maneira geral, normal e esperada de Deus se
comunicar conosco hoje é pelo Espirito falando pelas Escrituras e pela sua
Providência, que é a maneira sábia pela qual Deus controla e governa os
acontecimentos.
Vamos
voltar ao dom de profecia. Afinal, ele existe hoje ou não?
Depende
do que estamos falando. Os profetas do Antigo Testamento, como Isaías e
Ezequiel por exemplo, receberam de Deus revelações quanto ao futuro de Israel,
nas nações daquela época e da humanidade em geral. Estas revelações foram
registradas em livros com o nome destes profetas e fazem parte da Bíblia. Além
da profecia preditiva, os profetas exortavam o povo de Deus a que se
arrependessem de seus pecados e voltassem à obediência da aliança. Na verdade,
os livros deles trazem proporcionalmente muito mais exortações e advertências
do que predições do futuro.
Os
sucessores dos profetas do Antigo Testamento foram os apóstolos do Novo
Testamento. Paulo, Pedro, João e os demais apóstolos também receberam
revelações de Deus quanto ao futuro, a saber, a vinda de Cristo, a ressurreição
dos mortos, o novo céu e a nova terra.
Os
profetas das igrejas locais no período apostólico não eram iguais aos profetas
do Antigo Testamento como Isaías, Jeremias, Oséias, Joel, Amós, etc. Entendo
que o dom de profecia que aparece nas listas de dons do Novo Testamento se
refere à capacidade dada por Deus a determinadas pessoas para trazerem uma
palavra de Deus à igreja, baseada nas Escrituras, em momentos de crise e
necessidade. O profeta exortava, edificava e instruía os crentes reunidos. Não
vejo qualquer base para dizermos que o dom de profetizar no Novo Testamento é o
poder para revelar o que está acontecendo na vida íntima dos outros ou anunciar
o futuro da vida das pessoas. Se fosse feito um registro da quantidade de
profecias deste tipo que se mostraram falsas, não cumpridas ou que são tão
gerais que cabe tudo nelas, já teríamos concluído de vez que o dom de
profetizar não é isto.
Mas, e
o caso do profeta Ágabo no livro de Atos que profetizou por duas vezes
acontecimentos futuros?
Ágabo
profetizou por duas vezes fatos que estavam relacionados com a vida e o
ministério do apóstolo Paulo, durante o período em que as Escrituras estavam
sendo feitas e no qual Paulo era o principal protagonista. Me parece claramente
uma situação excepcional e bastante diferente do período atual da história da
igreja.
Não
acha que essa sua posição acaba por extinguir e apagar o Espírito e impedir a
ação de Deus no meio de seu povo? Não é este o pecado imperdoável, a blasfêmia
contra o Espírito Santo?
Acho
que o maior pecado contra o Espírito é desobedecer as orientações que Ele nos
deu na Bíblia para examinarmos todas as coisas. Ele orientou os escritores
bíblicos a escreverem aos crentes dizendo que eles deveriam estar atentos
contra manifestações espirituais que não procediam de Deus, contra a ação de
falsos profetas e falsos irmãos e mesmo contra a ação de espíritos enganadores
que são capazes de realizar sinais e prodígios (Apocalipse 16:14). O Espírito
nos chama a discernir os espíritos, a exercitar o bom senso e usar a razão.
Pecamos contra o Espírito ao aceitarmos as manifestações espirituais de maneira
crédula, sem exame ou análise, renunciando às orientações bíblicas e à nossa
razão. É pela omissão dos crentes que os falsos profetas entram nas igrejas e
disseminam heresias perniciosas.
Qual o
seu comentário final aos nossos ouvintes?
Não
considero a questão da contemporaneidade dos dons como sendo uma daquelas que
se acham no coração do cristianismo. Não estou negando a importância da
discussão se todos os dons que aparecem na Bíblia estão disponíveis hoje ou
não. A verdade é que cristãos verdadeiros que são cessacionistas ou
continuístas têm o mesmo desejo, que é servir a Deus de todo coração e serem
instrumentos de bênção para os outros. Por outro lado, se não tivermos uma
compreensão clara de um assunto como este, poderemos não somente nos privar da
verdade como também promover a mentira – em ambos os casos, mesmo que o
prejuízo não seja fatal, certamente afetará a nossa vida e das pessoas ao nosso
redor.
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