Os Cânones de Dort(1618-1619)
CAPÍTULO 1
A DIVINA ELEIÇÃO E REPROVAÇÃO
1. Todos os
homens pecaram em Adão, estão debaixo da maldição de Deus e são condenados à morte eterna. Por isso Deus não teria feito injustiça a ninguém se Ele tivesse
resolvido deixar toda a raça humana no pecado e sob a maldição e condená-la por causa do seu pecado, de
acordo com estas palavras do apóstolo: "... para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus... pois
todos pecaram e carecem da glória de Deus...", e:"...o salário do
pecado é a morte..." (Rom. 3:19,23; 6:23).
2. Mas
"Nisto se manifestou o amor de Deus em nós, em haver Deus enviado o seu
Filho unigênito ao mundo...", "...para que todo o que nele crê não
pereça, mas tenha a vida
eterna." (I Jo 4:9; Jo 3:16).
3. Para que os homens sejam conduzidos à fé, Deus envia, em sua misericórdia, mensageiros
desta mensagem muito alegre a quem e quando Ele quer. Pelo ministério deles, os
homens são chamados ao arrependimento e à fé no Cristo crucificado. Porque
"...como crerão naquele de quem nada ouviram? e como ouvirão, se não há
quem pregue? E como pregarão se não forem enviados?..." (Rom. 10:14, 15).
4. A ira de Deus
permanece sobre aqueles que não crêem neste Evangelho. Mas aqueles que o
aceitam e abraçam Jesus, o Salvador, com uma fé verdadeira e viva, são
redimidos por Ele da ira de Deus e da perdição, e presenteados com a vida
eterna (Jo 3:36; Mc 16:16).
5. Em Deus não está, de forma alguma, a
causa ou culpa desta incredulidade. O homem tem a culpa dela, tal como de todos os demais pecados. Mas a fé em Jesus Cristo e também a salvação por meio dEle são dons gratuitos de Deus, como está
escrito: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de
vós, é dom de Deus..." (Ef 2:8). Semelhantemente, "Porque vos foi
concedida a graça de..." crer em Cristo (Fp 1:29).
6. Deus dá nesta vida a fé a alguns
enquanto não dá a fé a outros. Isto procede do eterno
decreto de Deus. Porque as Escrituras dizem que Ele "...faz estas cousas
conhecidas desde séculos." e que Ele "faz todas as cousas conforme o
conselho da sua vontade..." (Atos 15:18; Ef 1:11). De acordo com este decreto, Ele graciosamente quebranta os corações dos eleitos, por
duros que sejam, e os inclina a crer. Pelo mesmo decreto, entretanto, segundo
seu justo juízo, Ele deixa os não-eleitos em sua própria maldade e dureza. E
aqui especialmente nos é manifesta a profunda, misericordiosa e ao mesmo tempo
justa distinção entre os homens que estão na mesma condição de perdição. Este é
o decreto da eleição e reprovação revelado na Palavra de Deus. Ainda que os homens
perversos, impuros e instáveis o deturpem, para sua própria perdição, ele dá um
inexprimível conforto para as pessoas santas e tementes a Deus.
7. Esta eleição é o imutável propósito
de Deus, pelo qual Ele, antes da fundação do mundo, escolheu um número grande e
definido de pessoas para a salvação, por graça pura. Estas são escolhidas de
acordo com o soberano bom propósito de sua vontade, dentre todo o gênero
humano, decaído pela sua própria culpa de sua integridade original para o
pecado e a perdição. Os eleitos não são melhores ou mais dignos que os outros,
porém envolvidos na mesma miséria dos demais. São escolhidos em Cristo, quem
Deus constituiu, desde a eternidade, como Mediador e Cabeça de todos os eleitos
e fundamento da salvação. E, para salvá-los por Cristo, Deus decidiu dá-los a
Ele e efetivamente chamá-los e atraí-los à sua comunhão por meio da sua Palavra
e seu Espírito. Em outras palavras, Ele decidiu dar-lhesverdadeira fé em Cristo,
justificá-los, santificá-los, e depois, tendo-os guardado poderosamente na
comunhão de seu Filho, glorificá-los finalmente. Deus fez isto para a
demonstração de sua misericórdia e para o louvor da riqueza de sua gloriosa
graça. Como está escrito: "... assim como nos escolheu nele, antes da
fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor
nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo,
segundo o beneplácito [bom propósito] de sua vontade, para louvor da glória de
sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado...". E em outro
lugar: "E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a
esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou"
(Ef 1:4-6; Rom 8:30).
8. Esta eleição náo é múltipla, mas ela
é uma e a mesma de todos os que são salvos tanto no Antigo Testamento quanto no
Novo Testamento. Pois a Escritura nos prega o único bom propósito e conselho da
vontade de Deus, pelo qual Ele nos escolheu desde a eternidade, tanto para a
graça como para a glória, assim também para a salvação e para o caminho da
salvação, o qual preparou para que andássemos nEle (Ef 1:4,5; 2:10).
9. Esta eleição não é baseada em fé
prevista, em obediência de fé, santidade ou qualquer boa qualidade ou disposição, que seria uma causa ou condição previamente requerida ao
homem para ser escolhido. Mas a eleição é para fé, obediência de fé, santidade,
etc. Eleição, portanto, é a fonte de todos os bens da salvação, de onde
procedem a fé, a santidade e os outros dons da salvação, e finalmente a própria
vida eterna como seus frutos. É conforme o testemunho do apóstolo: Ele
"...nos escolheu..." (não por sermos mas) "...para sermos santos
e irrepreensíveis perante ele..." (Ef 1:4).
10. A causa desta eleição graciosa é
somente o bom propósito de Deus. Este bom propósito não consiste no fato de
que, dentre todas as condições possíveis Deus tenha escolhido certas qualidades
ou ações dos homens como condição para salvação. Mas este bom propósito consiste
no fato de que Deus adotou certas pessoas dentre da multidão inteira de
pecadores para ser a sua propriedade. Como está escrito: "E ainda não eram
os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal...já lhe fora dito a
ela (Rebeca): O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito,
"Amei a Jacó, porém me aborreci de Esaú." E, "...creram todos os
que haviam sido destinados para a vida eterna." (Rom 9:11-13; At 13:48).
11. Como Deus é supremamente sábio,
imutável, onisciente, e Todo-Poderoso, assim sua eleição não pode ser cancelada
e depois renovada, nem alterada, revogada ou anulada; nem mesmo podem os
eleitos ser rejeitados, ou o número deles ser diminuído.
12. Os eleitos recebem, no devido
tempo, a certeza da sua eterna e imutável eleição para salvação, ainda que em
vários graus e em medidas desiguais. Eles não a recebem quando curiosamente
investigam os mistérios e profundezas de Deus. Mas eles a recebem, quando
observam em si mesmos, com alegria espiritual e gozo santo, os infalíveis
frutos de eleição indicados na Palavra de Deus - tais como uma fé verdadeira em
Cristo, um temor filial para com Deus, tristeza com seus pecados segundo a
vontade de Deus, e fome e sede de justiça.
13. A consciência e a certeza desta
eleição fornecem diariamente aos filhos de Deus maior motivo para se humilhar
perante Deus, para adorar a profundidade de sua misericórdia, para se
purificar, e para amar ardentemente Aquele que primeiro tanto os amou. Contudo
absolutamente não é verdade que esta doutrina da eleição e a reflexão na mesma
os façam relaxar na observação dos mandamentos de Deus ou rendam segurança
falsa. No justo julgamento de Deus isto ocorre freqüentemente àqueles que se
vangloriam levianamente da graça da eleição, ou facilmente falam acerca disto,
mas recusam andar nos caminhos dos eleitos.
14. A doutrina da divina eleição, segundo o mui sábio conselho de Deus, foi pregada pelos profetas, por Cristo
mesmo, e pelos apóstolos, tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento, e
depois escrita e nos entregue nas Escrituras Sagradas. Por isso, também hoje
esta doutrina deve ser ensinada no seu devido tempo e lugar na Igreja de Deus,
para qual ela foi particularmente destinada. Ela deve ser ensinada com espírito
de discrição, de modo reverente e santo, sem curiosa investigação dos caminhos
do Altíssimo, para a glória do santo nome de Deus e consolação vivificante do
seu povo.
15. A Escritura Sagrada mostra e
recomenda a nós esta graça eterna e imerecida sobre nossa eleição, especialmente quando, além disso, testifica que nem todos
os homens são eleitos, mas que alguns não o são, ou seja, são passados na
eleição eterna de Deus. De acordo com seu soberano, justo, irrepreensível e
imutável bom propósito, Deus decidiu deixá-los na miséria comum em que se
lançaram por sua própria culpa, nao lhes concedendo a fé salvadora e a graça de
conversão. Para mostrar sua justiça, decidiu deixá-los em seus próprios
caminhos e debaixo do seu justo julgamento, e finalmente condená-los e puni-los
eternamente, não apenas por causa de sua incredulidade, mas também por todos os
seus pecados, para mostrar sua justiça. Este é o decreto da reprovação qual não
torna Deus o autor do pecado (tal pensamento é blasfêmia!), mas O declara o
temível, irrepreensível e justo Juiz e Vingador do pecado.
16. Há pessoas que não sentem
fortemente a fé viva em Cristo, nem confiança firme no coração, nem boa
consciência, nem zelo pela obediência filial e pela glorificação de Deus por
meio de Cristo. Apesar disso elas usam os meios pelos quais Deus prometeu
operar tais coisas em nós. Elas não devem se desanimar quando a reprovação for
mencionada nem contar a si mesmos entre os reprovados. Pelo contrário, devem
continuar diligentemente no uso destes meios, desejando ferventemente dias de
graça mais abundante e esperando-os com reverência e humildade. Não devem se assustar
de maneira nenhuma com a doutrina da reprovação os que desejam seriamente se
converter a Deus, agradar só a Ele e serem libertos do corpo de morte, mas
ainda não podem chegar no ponto que gostariam no caminho da piedade e da fé. O
Deus misericordioso prometeu não apagar a torcida que fumega, nem esmagar a
cana quebrada. Mas esta doutrina é certamente assustadora para os que não
contam com Deus e o Salvador Jesus Cristo e se entregaram completamente às
preocupações do mundo e aos desejos da carne, enquanto não se converterem seria
mente a Deus.
17. Devemos julgar a respeito da
vontade de Deus com base na sua Palavra. Ela testifica que os filhos de crentes
são santos, não por natureza mas em virtude da aliança da graça, na qual estão
incluídos com seus pais. Por isso os pais que temem a Deus não devem ter dúvida
da eleição e salvação de seus filhos, que Deus chama desta vida ainda na
infância.
18. Aqueles que reclamam contra esta
graça de eleição imerecida e a severidade da justa reprovação, nós replicamos
com esta sentença do apóstolo: "Quem és tu, ó homem para discutires com
Deus?!" (Rom 9:20). E com esta palavra do Salvador: "Porventura não
me é lícito fazer o que quero do que é meu?" (Mt 20:15). Nós entretanto,
adorando reverentemente estes mistérios, exclamamos com o apóstolo: "O
profundidade da riqueza, tanto da sabedoria, como do conhecimento de Deus! Quão
insondáveis são os seus juízos e quão inescrutáveis os seus caminhos! Quem,
pois conheceu a mente do Senhor? ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem
primeiro lhe deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele e por
meio dele e para ele são todas as cousas. A ele, pois, a glória eternamente.
Amém." (Rom 11:33-36).
REJEIÇÃO DE ERROS
Havendo explicado a doutrina ortodoxa
de eleição e reprovação, o Sínodo rejeita os seguintes erros:
Erro 1 - A vontade
de Deus para salvar aqueles que crerem e perseverarem na fé e na obediência da
fé é o decreto inteiro e total da eleição para salvação. Nada mais sobre este
decreto foi revelado na Palavra de Deus.
Refutação - Este erro engana aos
simples e claramente contradiz a Escritura. Ela testifica não apenas que Deus
salvará aqueles que crêem mas também que escolheu específicas pessoas desde a
eternidade. Nesta vida Ele dará a estes eleitos a fé em Cristo e perseverança,
que Ele não dá a outros; como está escrito: "Manifestei o teu nome aos
homens que me deste do mundo." (Jo 17:6). "...e creram todos os que
haviam sido destinados para a vida eterna." (At 13:48). "...como nos
escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis
perante ele..." (Ef 1:4).
Erro 2 - Há vários tipos de eleição
divina para a vida eterna. Um é geral e indefinido, e outro é particular e
definido. Esta última eleição ou é incompleta, revogável, não-decisiva e
condicional, ou é completa, irrevogável, decisiva e absoluta. Do mesmo modo, há
uma eleição para fé e outra para salvação. Portanto eleição pode ser para a fé
justificante, sem ser decisiva para a salvação.
Refutação - Isto é uma invenção da
mente humana, sem nenhuma base na Escritura. Essa invenção corrompe a doutrina
da eleição e quebra a corrente de ouro da nossa salvação. "E aos que
predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também
justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou." (Rom 8:30).
Erro 3 - O bom propósito de Deus do
qual a Escritura fala na doutrina da eleição não significa que Ele escolheu
certas pessoas e não outras, mas que Ele, dentre todas as condições possíveis
(inclusive as obras da lei) ou seja, dentre todas as possibilidades, escolheu
como condição de salvação, o ato de fé, que é sem méritos de si mesmo, e a
obediência imperfeita da fé. Na sua graça Ele a considera como obediência
perfeita e digna da recompensa da vida eterna.
Refutação - Este erro perigoso invalida
o bom propósito de Deus e o mérito de Cristo, e desvia as pessoas, por questões
inúteis, da verdade da justificação graciosa e da simplicidade da Escritura.
Ele acusa de falsidade esta declaração do apóstolo: " ...que nos salvou e
nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua
própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos
eternos." (II Tim 1:9).
Erro 4 - Eleição para fé depende das
seguintes condições prévias: o homem deve fazer uso adequado da luz da
natureza, e deve ser piedoso, humilde, submisso e qualificado para a vida
eterna.
Refutação - Assim parece que a eleição
depende destas coisas. Isto tem o sabor do ensino de Pelágio e está em conflito
com o ensino do apóstolo em Efésios 2:3-9: "...entre os quais também todos
nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade
da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como também os
demais. Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que
nos amou, e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com
Cristo -- pela graça sois salvos, e juntamente com ele nos ressuscitou e nos
fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus; para mostrar nos séculos
vindouros a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco em Cristo
Jesus. Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é
dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie."
Erro 5 - A eleição incompleta e
não-definitiva de certas pessoas para a salvação se baseou nisto: Deus previu
que elas começariam a crer, se converter, viver em santidade e piedade, e até
continuariam nisto por algum tempo. Eleição completa e definitiva de pessoas,
porém, ocorreu porque Deus previu que elas perseverariam em fé, conversão,
santidade e piedade até ao fim. Isto é a dignidade graciosa e evangélica por
causa da qual a pessoa que é escolhida é mais digna que outra que não é
escolhida. Consequentemente a fé, a obediência de fé, a piedade e a
perseverança não são frutos da imutável eleição para glória. São condições e
causas previamente requeridas e previstas como cumpridas naqueles que serão
eleitos completamente. Só com base nestas condições ocorre a eleição imutável
para a glória.
Refutação - Este erro está em conflito
com toda a Escritura que repete constantemente para nossos ouvidos e corações,
estas e semelhantes afirmações: eleição "não [é] por obras mas por aquele
que chama..." (Rom 9:11), "...e creram todos os que haviam sido
destinados para a vida eterna." (At 13:48); "...nos escolheu nele
antes da fundação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis perante
ele..." (Ef 1:4); "Não fostes vós que me escolhestes a mim; pelo
contrário, eu vos escolhi a vós outros..." (Jo 15:16); "...se é pela
graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça." (Rom
11:6). "Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas
em que Ele nos amou, e enviou o seu Filho..." (I Jo 4:10).
Erro 6 - Nem toda eleição para salvação
é imutável. Alguns dos eleitos podem perder-se e de fato se perdem eternamente,
não obstante qualquer decreto de Deus.
Refutação - Este erro grosseiro faz
Deus mutável, destrói o conforto dos crentes quanto à constância de sua
eleição, e contradiz a Escritura: os eleitos não podem ser enganados (Mt
24:24); "E a vontade de quem me enviou é esta: Que nenhum eu perca de
todos os que me deu..." (Jo 6:39); "E aos que predestinou a esses
também chamou; e aos que chamou a esses também justificou; e aos que justificou
a esses também glorificou." (Rom 8:30).
Erro 7 - Nesta vida não há fruto,
consciência ou certeza da eleição imutável para glória, exceto a certeza que
depende de uma condição mutável e incerta.
Refutação - Falar acerca de uma certeza
incerta é não apenas absurdo mas também contrário à experiência dos santos.
Sentindo sua eleição, eles se regozijam junto com o apóstolo e glorificam este
benefício de Deus (Cf Ef 1:12). Conforme o mandamento de Cristo Eles se
regozijam junto com os discípulos por seus nomes estarem escritos nos céus (Lc
10:20). Eles colocam a consciência de sua eleição contra os dardos inflamados
das tentações do diabo, quando perguntam: "Quem intentará acusação contra
os eleitos de Deus?" (Rom 8:33).
Erro 8 - Deus não decidiu, simplesmente
com base em sua justa vontade, deixar ninguém na queda de Adão e no estado
comum de pecado e condenação. Nem decidiu passar ninguém quando deu a graça,
necessária para fé e conversão.
Refutação - Pois isto é certo:
"Logo, tem ele misericórdia de quem quer, e também endurece a quem lhe
apraz." (Rom 9:18). E também isto: "...Porque a vós outros é dado
conhecer os mistérios do reino dos céus, mas àqueles não lhes é isso
concedido." (Mt 13:11). Igualmente: "...Graças te dou, ó Pai, Senhor
do céu e da terra, porque ocultaste estas cousas aos sábios e entendidos, e as
revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi de teu agrado." (Mt
11:25,26).
Erro 9 - Deus envia o Evangelho a um
povo mais que a um outro, não meramente e somente por causa do bom propósito de
sua vontade, mas por ser este melhor e mais digno que o outro, ao qual o
Evangelho não é comunicado.
Refutação - Moisés nega isto quando se
dirige ao povo de Israel dizendo: "Eis que os céus e os céus dos céus são
do SENHOR teu Deus, a terra e tudo o que nela há. Tão-somente o SENHOR se
afeiçoou a teus pais para os amar: a vós outros, descendentes deles escolheu de
todos os povos, como hoje se vê." (Dt 10:14, 15). E Cristo diz: "Ai
de ti, Corazim! ai de ti, Betsaida! porque, se em Tiro e em Sidom se tivessem
operado os milagres que em vós se fizeram, há muito que elas se teriam
arrependido, com pano de saco e cinza." (Mt 11:21).
CAPÍTULO 2
A MORTE DE CRISTO
E A REDENÇÃO DO HOMEM POR MEIO DELA
1. Deus é não só supremamente misericordioso mas também supremamente justo. E
como Ele se revelou em sua Palavra, sua justiça exige que nossos pecados,
cometidos contra sua infinita majestade, sejam punidos nesta vida e na futura,
em corpo e alma. Não podemos escapar destas punições a menos que seja cumprida
a justiça de Deus.
2. Por nós mesmos, entretanto, não
podemos cumprir tal satisfação nem podemos livrar a nós mesmos da ira de Deus.
Por isso Deus, em sua infinita misericórdia deu seu Filho único como nosso
Fiador. Por nós, ou em nosso lugar, Ele foi feito pecado e maldição na cruz
para que pudesse satisfazer a Deus por nós.
3. Esta morte do Filho de Deus é o
único e perfeito sacrifício pelos pecados, de valor e dignidade infinitos,
abundantemente suficiente para expiar os pecados do mundo inteiro.
4. Essa morte é de tão grande poder e
valor porque quem se submeteu a ela, é não apenas verdadeira e perfeitamente
santo homem, mas também o Filho único de Deus. Ele é Deus eterno e infinito
junto ao Pai e ao Espírito Santo. Assim devia ser nosso Salvador. Além disto, Ele
sentiu, quando morria a ira e a maldição de Deus que nós merecemos, pelos
nossos pecados.
5. A promessa do Evangelho é que todo
aquele que crer no Cristo crucificado não pereça mas tenha vida eterna. Esta
promessa deve ser anunciada e proclamada sem discriminação a todos os povos e a
todos os homens, aos quais Deus em seu bom propósito envia o Evangelho, com a
ordem de se arrepender e crer.
6. Muitos que têm sido chamados pelo
Evangelho não se arrependem nem crêem em Cristo, mas perecem na incredulidade. Isto
não acontece por causa de algum defeito ou insuficiência no sacrifício de
Cristo na cruz, mas por causa de sua própria culpa.
7. Mas aqueles que verdadeiramente
crêem e, pela morte de Cristo, são libertos e salvos dos seus pecados e
perdição, recebem tal benefício apenas por causa da graça de Deus, que lhes é
dada, em Cristo, desde a eternidade. Deus não deve a ninguém tal graça.
8. Pois este foi o soberano conselho, a
vontade graciosa e o propósito de Deus o Pai, que a eficácia vivificante e
salvífica da preciosíssima morte de seu Filho fosse estendida a todos os
eleitos. Daria somente a eles a justificação pela fé e por conseguinte os
traria infalivelmente à salvação. Isto quer dizer que foi da vontade de Deus
que Cristo por meio do sangue na cruz (pelo qual Ele confirmou a nova aliança)
redimisse efetivamente de todos os povos, tribos, línguas e nações, todos
aqueles e somente aqueles que foram escolhidos desde a eternidade para serem
salvos, e Lhe foram dado pelo Pai. Deus quis que Cristo lhes desse a fé, que
Ele mesmo lhes conquistou com sua morte, junto com outros dons salvíficos do
Espírito Santo. Deus quis também que Cristo os purificasse de todos os pecados
por meio do seu sangue, tanto do pecado original como dos pecados atuais, que
foram cometidos antes e depois de receberem a fé. E que Cristo os guardasse
fielmente até ao fim e finalmente os fizesse comparecer perante o próprio Pai
em glória, "sem mácula, nem ruga" (Ef 5:27).
9. Este conselho, procedendo do amor
eterno de Deus aos eleitos, tem sido poderosamente cumprido, desde o começo do
mundo até hoje, ainda que as "portas do inferno" em vão tentem
frustrá-lo. O conselho de Deus também continuará a ser cumprido. No devido
tempo os eleitos serão unidos em um só rebanho, e sempre haverá uma Igreja de
crentes fundada no sangue de Cristo. Esta Igreja ama firmemente seu Salvador (o
qual como noivo deu na cruz sua própria vida por sua noiva), O serve com
perseverança e O glorifica agora e para sempre.
REJEIÇÃO DE ERROS
Havendo explicado a doutrina ortodoxa,
o Sínodo rejeita os seguintes erros:
Erro 1 - Deus o Pai destinou seu Filho
à morte na cruz sem um decreto definido de determinadas pessoas. Mesmo que a
redenção por Cristo conquistada de fato nunca tivesse sido aplicada a nem uma
só pessoa, o que Ele alcançou pela sua morte podia ter sido necessário,
proveitoso e valioso e podia permanecer perfeito, completo, e intacto em todas
as suas partes.
Refutação - Esta doutrina é uma ofensa
à sabedoria do Pai, ao mérito de Cristo e é contrária à Escritura. Pois o nosso
Salvador afirma: "... dou a minha vida pelas ovelhas." e "eu as
conheço..." (Jo 10:15, 27). E o profeta Isaías fala acerca do Salvador:
"... quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a sua
posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do SENHOR prosperará nas
suas mãos." (Is 53:10). Finalmente, este erro invalida o artigo de fé pelo
qual confessamos a Igreja universal de Cristo.
Erro 2 - Não era propósito da morte de
Cristo que Ele confirmasse de fato a nova aliança da graça pelo seu sangue. Mas
era somente propósito que conquistasse para o Pai o mero direito de estabelecer
de novo uma aliança com o homem, seja de graça seja de obras, conforme a
vontade do Pai.
Refutação - Isto contradiz a Escritura
que ensina que Cristo se tornou o Fiador e Mediador de uma aliança superior,
isto é, da nova aliança. Um testamento só se concretiza em caso de morte (Hb
7:22 e 9:15, 17).
Erro 3 - Por sua satisfação ao Pai,
Cristo não mereceu para ninguém a salvação segura nem a fé pela qual esta
satisfação para salvação é efetivamente aplicada. Ele obteve apenas para o Pai
a possibilidade ou a vontade perfeita, para tratar de novo com o homem e para
prescrever novas condições conforme sua vontade. Depende entretanto da livre
vontade do homem para preencher estas condições. Portanto poderia acontecer que
ninguém ou todos os homens preenchessem tais condições.
Refutação - Aqueles que ensinam este
erro desprezam a morte de Cristo e não reconhecem de maneira nenhuma o seu mais
importante resultado ou benefício. Eles evocam do inferno o erro pelagiano.
Erro 4 - A nova aliança da graça, que
Deus o Pai, mediante a morte de Cristo, estabeleceu com o homem, não consiste
nisso que nós estamos justificados diante de Deus e salvos pela fé se ela
aceita o mérito de Cristo. Ela consiste no fato de que Deus revogou a exigência
de perfeita obediência à lei e considera agora a própria fé e a obediência de
fé, ainda que imperfeitas, como a perfeita obediência à lei. Ele acha, em sua
graça, que elas sejam dignas da recompensa da vida eterna.
Refutação - Os que ensinam isto
contradizem a Escritura: "...sendo justificados gratuitamente, por sua
graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu
sangue, como propiciação, mediante a fé..." (Rom 3:24, 25). Eles
introduzem, junto com o ímpio Socino, uma nova e estranha justificação do homem
diante de Deus, contrária ao consenso da Igreja inteira.
Erro 5 - Todas as pessoas têm sido
aceitas por Deus, de tal maneira que estão reconciliadas com Ele e participam
da aliança. Por isso ninguém está sujeito à condenação ou será condenado por
causa do pecado original. Todos estão livres da culpa deste pecado.
Refutação - Esta opinião contraria a
Escritura que ensina que nós somos "por natureza filhos da ira" (Ef
2:3).
Erro 6 - Deus, por sua parte, quer dar
a todas as pessoas igualmente os benefícios conquistados pela morte de Cristo.
Entretanto algumas obtêm o perdão de pecados e a vida eterna, e outras não.
Esta distinção depende de sua própria livre vontade que se junta à graça que é
oferecida sem distinção. Mas não depende do dom especial da misericórdia que
opera tão poderosamente nestas pessoas, que elas, diferentes de outras, se
apropriam desta graça.
Refutação - Os que ensinam assim abusam
da distinção entre aquisição e apropriação da salvação para implantar esta
opinião nas mentes de pessoas imprudentes e sem experiência. Enquanto eles
simulam apresentar esta distinção da maneira correta, procuram induzir na mente
do povo o perigoso veneno dos erros pelagianos.
Erro 7 - Cristo não podia nem precisava
morrer, nem morreu de fato, por aqueles a quem Deus amou supremamente e elegeu
para a vida eterna, visto que estes não precisavam da morte de Cristo.
Refutação - Esta doutrina contradiz o
apóstolo, que declara: O Filho de Deus "me amou e a si mesmo se entregou
por mim." (Gl 2:20). Igualmente: "Quem intentará acusação contra os
eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus
quem morreu..." por eles (Rom.8:33, 34). E o Salvador assegura:
"...dou a minha vida pelas ovelhas." (Jo 10:15). E mais: "O meu
mandamento é este, que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei.
Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos
seus amigos." (Jo 15:12, 13).
CAPÍTULOS 3 e 4
A CORRUPÇÃO DO HOMEM,
A SUA CONVERSÃO A DEUS E O MODO DELA
1. No princípio o homem foi criado à imagem de Deus. Foi adornado em seu
entendimento com o verdadeiro e salutar conhecimento de Deus e de todas as
coisas espirituais. Sua vontade e seu coração eram retos, todos os seus afetos
puros; portanto, era o homem completamente santo. Mas, desviando-se de Deus sob
instigação do diabo e pela sua própria livre vontade, ele se privou destes dons
excelentes. Em lugar disso trouxe sobre si cegueira, trevas terríveis, leviano
e perverso juízo em seu entendimento; malícia, rebeldia e dureza em sua vontade
e seu coração; também impureza em todos os seus afetos.
2. Depois da queda, o homem corrompido
gerou filhos corrompidos. Então a corrupção, de acordo com o justo julgamento
de Deus, passou de Adão até todos os seus descendentes, com exceção de Cristo
somente. Não passou por imitação, como os antigos pelagianos afirmavam, mas por
procriação da natureza corrompida.
3. Portanto, todos os homens são
concebidos em pecado e nascem como filhos da ira, incapazes de qualquer ação
que o salve, inclinados para o mal, mortos em pecados e escravos do pecado. Sem
a graça do Espírito Santo regenerador nem desejam nem tampouco podem retornar a
Deus, corrigir suas naturezas corrompidas ou ao menos estar dispostos para esta
correção.
4. É verdade que há no homem depois da
queda um resto de luz natural. Assim ele retém ainda alguma noção sobre Deus,
sobre as coisas naturais e a diferença entre honrado e desonrado e pratica um
pouco de virtude e disciplina exterior. Mas o homem está tão distante de chegar
ao conhecimento salvífico de Deus e à verdadeira conversão por meio desta luz
natural que ele não a usa apropriadamente nem mesmo em assuntos cotidianos.
Antes, qualquer que seja esta luz, o homem totalmente a polui de maneiras
diversas e a detém pela injustiça. Assim ele se faz indesculpável perante Deus.
5. O que foi dito sobre a luz da
natureza vale também com relação à lei dos Dez Mandamentos, dada por Deus
através de Moisés, particularmente aos judeus. A lei revela como é grande o
pecado e mais e mais convence o homem de sua culpa, mas não aponta o remédio
nem dá a força para sair desta miséria. A lei ficou sem força pela carne e
deixa o transgressor debaixo da maldição. Por esta razão o homem não pode obter
a graça salvadora através da lei.
6. Aquilo que a luz natural nem a lei
podem fazer, Deus o faz pelo poder do Espírito Santo e pela pregação ou
ministério da reconciliação, que é o Evangelho do Messias. Agradou a Deus usar
este Evangelho para salvar os crentes, tanto na antiga quanto na nova aliança.
7. No Antigo Testamento Deus revelou
este mistério da sua vontade apenas a poucas pessoas. No Novo testamento,
entretanto, Ele retirou a distinção entre os povos e revelou o mistério a muito
mais pessoas. Esta distribuição distinta do Evangelho não é causada pela maior
dignidade de um certo povo, nem pelo melhor uso da luz da natureza, mas pelo
soberano bom propósito e amor imerecido de Deus. Portanto eles que recebem tão
grande graça, além e ao contrário de tudo que merecem, devem reconhecer isto
com coração humilde e agradecido. Mas eles devem com o apóstolo adorar a
severidade e justiça dos julgamentos de Deus sobre aqueles que não recebem esta
graça. Estes julgamentos de Deus, eles não devem, de maneira nenhuma,
investigá-los curiosamente.
8. Mas tantos quantos são chamados pelo
Evangelho, seriamente o são. Porque Deus revela séria e sinceramente em sua
Palavra o que Lhe agrada, a saber, que aqueles que são chamados venham a Ele.
Ele também seriamente promete descanso para a alma e vida eterna a todos que a
Ele vierem e crerem.
9. Muitos são chamados através do
ministério do Evangelho mas não vêm nem são convertidos. Não é a culpa do
Evangelho, nem do Cristo que é oferecido pelo Evangelho, nem de Deus que chama
através do Evangelho e inclusive confere vários dons a eles. Mas é sua própria
culpa. Alguns deles não aceitam a Palavra da vida por descuido. Outros de fato
a recebem, mas não em seus corações, e por isso, quando desaparece a alegria de
sua fé temporária, viram as costas à Palavra. Ainda outros sufocam a semente da
Palavra com os espinhos dos cuidados e prazeres deste mundo, e não produzem
nenhum fruto. Isto é o que o Salvador ensina na parábola do semeador (Mt 13).
10. Outros que são chamados pelo
ministério do Evangelho vêm e são convertidos. Isto não pode ser atribuído ao
homem, como se ele se distinguisse por sua livre vontade de outros que
receberam a mesma e suficiente graça para fé e conversão, como a heresia orgulhosa
de Pelágio afirma. Mas isto deve ser atribuído a Deus: como Ele os escolheu em
Cristo desde a eternidade, assim Ele os chamou efetivamente no tempo. Ele lhes
dá fé e arrependimento; Ele os livra do poder das trevas e os transfere para o
reino de seu Filho. Tudo isto Ele faz a fim de que eles proclamem as grandes
virtudes daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz, e se
gloriem não em si mesmos mas no Senhor, como é o testemunho geral dos escritos
apostólicos (Col 1:13; 1 Pe 2:9; 1 Cor 1:31).
11. Deus realiza seu bom propósito nos
eleitos e opera neles a verdadeira conversão da seguinte maneira: Ele faz com
que ouçam o Evangelho mediante a pregação e poderosamente ilumina suas mentes
pelo Espírito Santo de tal modo que possam entender corretamente e discernir as
coisas do Espírito de Deus. Mas pela operação eficaz do mesmo Espírito
regenerador, Deus também penetra até os recantos mais íntimos do homem. Ele
abre o coração fechado e amolece o que está duro, circuncida o que está
incircunciso e introduz novas qualidades na vontade. Esta vontade estava morta,
mas Ele a faz reviver; era má, mas Ele a torna boa; estava indisposta, mas Ele
a torna disposta; era rebelde, mas Ele a faz obediente. Ele move e fortalece
esta vontade de tal forma que, como uma boa árvore, seja capaz de produzir
frutos de boas obras (I Cor 2:14).
12. Esta conversão é aquela
regeneração, renovação, nova criação, ressurreição dos mortos e vivificação,
tão exaltada nas Escrituras, a qual Deus opera em nós, sem nós. Mas esta
regeneração não é efetuada pela pregação apenas, nem por persuasão moral. Nem
ocorre de tal maneira que, havendo Deus feito a sua parte, resta ao poder do
homem ser regenerado ou não regenerado, convertido ou não convertido. Ao
contrário, a regeneração é uma obra sobrenatural, poderosíssima, e ao mesmo
tempo agradabilíssima, maravilhosa, misteriosa e indizível. De acordo com o
testemunho da Escritura, inspirada pelo próprio autor desta obra, regeneração
não é inferior em poder à criação ou à ressurreição dos mortos.
Consequentemente todos aqueles em cujos corações Deus opera desta maneira
maravilhosa são, certamente, infalivelmente e efetivamente regenerados e de
fato passam a crer. Portanto a vontade que é renovada não é apenas acionada e
movida por Deus, mas ela age também, sob a ação de Deus, por si mesma. Por isso
também se diz corretamente que o homem crê e se arrepende mediante a graça que
recebeu.
13. Como Deus opera, os crentes,
enquanto vivos, não podem entender completamente. Entretanto, porém, estão
tranqüilos sabendo e sentindo que por esta graça de Deus eles crêem com o
coração e amam seu Salvador.
14. Fé é, portanto, um dom de Deus.
Isto não significa que Deus a oferece à livre vontade do homem, mas que ela é,
de fato, conferida ao homem e nele infundida. Não é um dom no sentido de que
Deus apenas concede poder para crer e depois espera da livre vontade do homem o
consentimento para crer ou o ato de crer. Ao contrário, é um dom no sentido de
que Deus efetua no homem tanto a vontade de crer quanto o ato de crer. Ele
opera tanto o querer como o realizar, sim, opera tudo em todos. (Ef 2:8; Fp
2:13).
15. Esta graça Deus não deve a ninguém.
Em troca de que seria Ele devedor ao homem? Quem tem primeiro dado a Ele para
que possa ser retribuído? O que poderia Deus dever a alguém que nada tem de si
mesmo a não ser pecado e falsidade? Aquele portanto, que recebe esta graça deve
e rende eterna gratidão a Deus. Porém quem não recebe esta graça, nem valoriza
estas coisas espirituais e tem prazer na sua própria situação, ou numa falsa
segurança em vão se gaba de ter o que não tem. Além disto, quanto aos que
manifestam sua fé e corrigem suas vidas, nós devemos julgar e falar da maneira
mais favorável, de acordo com o exemplo dos apóstolos, pois o fundo do coração
é desconhecido de nós. Quanto aos que ainda não foram chamados, nós devemos
orar a Deus em seu favor, pois Ele é que chama à existência as coisas que não
existem. De maneira nenhuma, porém, podemos ter uma atitude orgulhosa para com
eles, como se nós tivéssemos realizado nossa posição distinta (Rom 11:35).
17. O homem não deixou, apesar da
queda, de ser homem dotado de intelecto e vontade; e o pecado, que tem
penetrado em toda a raça
humana, não privou o homem de sua natureza
humana, mas trouxe sobre ele depravação e morte espiritual. Assim também a
graça divina da regeneração não age sobre os homens como se fossem máquinas ou
robôs, e não destrói a vontade e as suas propriedades, ou a coage
violentamente. Mas a graça a faz reviver espiritualmente, a cura, a corrige, e
a dobra agradável e ao mesmo tempo poderosamente. Como resultado, onde dominava
rebelião e resistência da carne, agora, pelo Espírito começa a prevalecer uma
pronta e sincera obediência. Esta é a verdadeira renovação espiritual e
liberdade da vontade. E se o admirável autor de todo bem não agisse desse modo
conosco, o homem não teria esperança de levantar-se da sua queda por meio de
sua livre vontade, pela qual ele, quando ainda estava em pé, se lançou na
perdição.
18. A todo-poderosa operação de Deus
pela qual Ele produz e sustenta nossa vida natural não exclui mas requer o uso
de meios, pelos quais Ele quis exercer seu poder, de acordo com sua infinita
sabedoria e bondade. Da mesma maneira a mencionada operação sobrenatural de
Deus, pela qual Ele nos regenera, de modo nenhum exclui ou anula o uso do
Evangelho, que o mui sábio Deus ordenou para ser a semente da regeneração e o
alimento da alma. Por esta razão os apóstolos, e os mestres que os sucederam,
piedosamente instruíram o povo acerca da graça de Deus, para sua glória e para
humilhação de toda soberba do homem. Ao mesmo tempo eles não descuidaram de
manter o povo, pelas santas admoestações do Evangelho, sob a ministração da
Palavra, dos sacramentos e da disciplina.
Por isso aqueles que hoje ensinam ou
aprendem na igreja não devem ousar tentar a Deus, separando aquilo que Ele em
seu bom propósito quis preservar inteiramente unido. Pois a graça é conferida,
através de admoestações, e quanto mais prontamente desempenhamos nosso dever,
tanto mais este benefício de Deus, que opera em nós, se manifesta gloriosamente
e sua obra prossegue da maneira melhor. A Deus somente toda glória eternamente,
tanto pelos meios quanto pelo fruto e eficácia salvíficos.
REJEIÇÃO DE ERROS
Havendo explicado a doutrina ortodoxa, o Sínodo rejeita os seguintes erros:
Erro 1 - É impróprio dizer que o pecado
original em si é suficiente para condenar toda a raça humana ou merecer castigo
temporal e eterno.
Refutação - Isto contradiz o apóstolo
que declara: "Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no
mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens
porque todos pecaram." (Rom 5:12) E no verso 16 diz: "... o
julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação." E em Rom 6:23:
"O salário do pecado é a morte."
Erro 2 - Os dons espirituais ou as boas
qualidades e virtudes, tal como a bondade, santidade, justiça, não podiam estar
na vontade do homem quando no princípio foi criado. Por isso também não podiam
ter sido separados da sua própria vontade quando caiu.
Refutação - Este erro é contrário à
descrição da imagem de Deus que o apóstolo dá em Ef 4:24, dizendo que ela
consiste em justiça e santidade, que sem dúvida estão na vontade.
Erro 3 - Na morte espiritual os dons
espirituais não são separados da vontade do homem. Porque a vontade como tal
nunca tem sido corrompida mas apenas atrapalhada pelo obscurecimento do
entendimento e pela desordem das afeções. Se estes obstáculos forem removidos,
a vontade pode exercer seu livre poder inato. A vontade é por si mesma capaz de
desejar e escolher ou não toda espécie de bem que lhe for apresentada.
Refutação - Esta é uma novidade e um
engano, e tende a exaltar os poderes da livre vontade, contrário ao que o
profeta Jeremias declara no cap. 17:9: "Enganoso é o coração, mais do que
todas as coisas, e desesperadamente corrupto...." E o apóstolo Paulo
escreve: "Entre os quais (os filhos da desobediência) também todos nós
andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da
carne e dos pensamentos" (Ef 2:3).
Erro 4 - O homem não-regenerado não é
realmente ou totalmente morto em pecados, ou privado de toda capacidade para
fazer o bem. Ele ainda pode ter fome e sede de justiça e vida, e pode oferecer
sacrifício de espírito contrito e quebrantado que agrada a Deus.
Refutação - Estas afirmações são
contrárias ao testemunho claro da Escritura: "Ele vos deu vida, estando
vós mortos nos vossos delitos e pecados" (Ef 2:1; cf.vs.5). E,
"...era continuamente mau todo o desígnio do seu coração" (Gn 6:5;
cf.8:21). Além do mais, somente os regenerados e os bem-aventurados têm fome e
sede da libertação da miséria, e da vida, e oferecem a Deus um sacrifício de
espírito quebrantado (Sl 51:19 e Mt 5:6).
Erro 5 - O homem degenerado e carnal
pode usar bem a graça comum (o que é a luz natural), ou os dons ainda lhe
deixados após a queda. Assim ele, sozinho, pode alcançar, pouco a pouco e
gradualmente, uma graça maior, isto é, a graça evangélica ou salvadora, e até a
salvação. Dessa forma Deus, por seu lado, mostra-se pronto para revelar Cristo
a todo homem, porque a todos Ele administra suficiente e efetivamente os meios
necessários para conhecer Cristo, para crer e se arrepender.
Refutação - Tanto a experiência de
todas as épocas como a Escritura testificam que isto não é verdade.
"Mostra a sua palavra a Jacó, as suas leis e os seus preceitos a Israel.
Não fez assim a nenhuma outra nação; todas ignoram os seus preceitos" (Sl
147:19,20). "...o qual nas gerações passadas permitiu que todos os povos
andassem nos seus próprios caminhos" (At 14:16). E Paulo e seus
companheiros foram "impedidos pelo Espírito Santo de pregar a Palavra na
Asia, defrontando Mísia, tentavam ir para Bitínia, mas o Espírito de Jesus não
o permitiu" (At 16:6,7).
Erro 6 - Na verdadeira conversão do
homem, Deus não pode infundir novas qualidades, novos poderes ou dons na
vontade humana. Portanto a fé, que é o começo da conversão, e que nos dá o nome
de crente, não é uma qualidade ou um dom outorgados por Deus mas apenas um ato
do homem. Somente com respeito ao poder para alcançar a fé, pode se dizer que é
um dom.
Refutação - Este ensino contradiz a
Sagrada Escritura que declara que Deus infunde em nossos corações novas
qualidades de fé, obediência e experiência de seu amor: "Na mente lhes imprimirei
as minhas leis, também nos corações lhas inscreverei" (Jr 31:33). E:
"...derramarei água sobre o sedento, e torrentes sobre a terra seca"
(Is 44:3). E ainda: "...o amor de Deus é derramado em nossos corações pelo
Espírito Santo que nos foi outorgado" (Rom 5:5). O ensino arminiano também
contraria a prática constante da Igreja, que ora com o profeta:
"Converte-me, e serei convertido" (Jr 31:18).
Erro 7 - Esta graça pela qual somos
convertidos a Deus é apenas um apelo gentil. Ou (como alguns explicam): Esta
maneira de agir, que consiste em aconselhar é a mais nobre maneira de converter
o homem e está mais em harmonia com a natureza do homem. Não há razão porque
tal graça persuasiva não seja suficiente para tornar espiritual o homem
natural. Em verdade, Deus não produz o consentimento da vontade a não ser
através deste tipo de apelo moral. O poder da operação divina supera a ação de
Satanás, Deus prometendo bens eternos e Satanás bens temporais.
Refutação - Isto é Pelagianismo por
completo, e contrário a toda Escritura que conhece além deste apelo moral,
outra operação, muito mais poderosa e divina: a ação do Espírito Santo na
conversão do homem: "Dar-vos-ei coração novo, e porei dentro em vós
espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de
carne" (Ez 36:26).
Erro 8 - Na regeneração do homem Deus
não usa os poderes de sua onipotência de tal maneira que Ele dobra a vontade do
homem, à força e infalivelmente, para fé e conversão. Mesmo sendo realizadas
todas as operações da graça que Deus possa usar para converter o homem e mesmo
que Deus tenha a intenção e a vontade de regenerá-lo, o homem ainda pode
resistir a Deus e ao Santo Espírito. De fato freqüentemente resiste, chegando a
impedir totalmente sua regeneração. Portanto ser ou não ser regenerado
permanece no poder do homem.
Refutação - Isto é nada mais nada menos
que anular todo o poder da graça de Deus em nossa conversão e sujeitar a
operação do Deus Todo-Poderoso à vontade do homem. É contrário ao que os
apóstolos ensinam: cremos "... segundo a eficácia da força do seu
poder" (Ef 1:19), e: "...para que nosso Deus cumpra... com poder todo
propósito de bondade e obra de fé..." (2 Ts 1:11), e também: "...pelo
seu divino poder nos têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e
piedade..." (2 Pe 1:3).
Erro 9 - Graça e livre vontade são as
causas parciais que operam juntas no início da conversão. Pela ordem destas
causas a graça não precede à operação da vontade do homem. Deus não ajuda
efetivamente a vontade do homem para sua conversão, enquanto a própria vontade
do homem não se move e decide se converter.
Refutação - A Igreja Antiga há muito
tempo já condenou esta doutrina dos Pelagianos, de acordo com a palavra do
apóstolo: "Assim, pois, não depende de quem quer, ou de quem corre, mas de
usar Deus a sua misericórdia" (Rom 9:16). Também: "Pois quem é que te
faz sobressair? e que tens tu que não tenhas recebido?..." (1 Cor 4:7)? E
ainda: "...porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o
realizar, segundo a sua boa vontade" (Fp 2:13).
CAPÍTULO 5
A PERSEVERANÇA DOS SANTOS
1. Aqueles que, de acordo com o seu propósito, Deus chama à comunhão do seu
Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, e regenera pelo seu Santo Espírito, Ele
certamente os livra do domínio e da escravidão do pecado. Mas nesta vida, Ele
não os livra totalmente da carne e do corpo de pecado (Rom 7:24).
2. Portanto, pecados diários de
fraqueza surgem e até as melhores obras dos santos são imperfeitas. Estes são
para eles constante motivo para humilhar-se perante Deus e refugiar-se no
Cristo crucificado. Também são motivo para mais e mais mortificar a carne
através do Espírito de oração, e através dos santos exercícios de piedade, e
ansiar pela meta da perfeição. Eles fazem isto até que possam reinar com o
Cordeiro de Deus nos céus, finalmente livres deste corpo de morte.
3. Por causa dos seus pecados
remanescentes e também por causa das tentações do mundo e de Satanás, aqueles
que têm sido convertidos não poderiam perseverar nesta graça, se deixados ao
cuidado de suas próprias forças. Mas Deus é fiel: misericordiosamente os
confirma na graça, uma vez conferida sobre eles, e poderosamente preserva a
eles na sua graça até o fim.
4. O poder de Deus, pelo qual Ele
confirma e preserva os verdadeiros crentes na graça, é tão grande que isto não
pode ser vencido pela carne. Mas os convertidos nem sempre são guiados e
movidos por Deus, e assim eles poderiam, em certos casos, por sua própria
culpa, se desviar da direção da graça, e ser seduzidos pelos desejos da carne e
segui-los. Devem, portanto, vigiar constantemente e orar para que não caiam em
tentação. Quando não vigiarem e orarem, eles podem ser levados pela carne, pelo
mundo e por Satanás para sérios e horríveis pecados. Isto ocorre também muitas
vezes pela justa permissão de Deus. A lamentável queda de Davi, Pedro e outros
santos, descrita na Sagrada Escritura, demonstra isto.
5. Por tais pecados grosseiros,
entretanto, eles causam a ira de Deus, se tornam culpados da morte, entristecem
o Espírito Santo, suspendem o exercício da fé, ferem profundamente suas
consciências e algumas vezes perdem temporariamente a sensação da graça. Mas
quando retornam ao reto caminho por meio de arrependimento sincero, logo a face
paternal de Deus brilha novamente sobre eles.
6. Pois Deus, que é rico em
misericórdia, de acordo com o imutável propósito da eleição, não retira
completamente o seu Espírito dos seus, mesmo em sua deplorável queda. Nem tão
pouco permite que venham a cair tanto que recaiam da graça da adoção e do
estado de justificado. Nem permite que cometam o pecado que leva à morte, isto
é, o pecado contra o Espírito Santo e assim sejam totalmente abandonados por
Ele, lançando-se na perdição eterna.
7. Pois, em primeiro lugar, em tal
queda, Deus preserva neles sua imperecível semente da regeneração, a fim de que
esta não pereça nem seja lançada fora. Além disto, através da sua Palavra e seu
Espírito, certamente Ele os renova efetivamente para arrependimento. Como
resultado eles se afligem de coração com uma tristeza para com Deus pelos
pecados que têm cometido; procuram e obtêm pela fé, com coração contrito,
perdão pelo sangue do Mediador; e experimentam novamente a graça de Deus, que é
reconciliado com eles, adorando sua misericórdia e fidelidade. E de agora em
diante eles se empenham mais diligentemente pela sua salvação com temor e
tremor.
8. Assim, não é por seus próprios
méritos ou força mas pela imerecida misericórdia de Deus que eles não caiam
totalmente da fé e da graça e nem permaneçam caídos ou se percam
definitivamente. Quanto a eles, isto facilmente poderia acontecer e aconteceria
sem dúvida. Porém, quanto a Deus, isto não pode acontecer, de modo nenhum. Pois
seu decreto não pode ser mudado, sua promessa não pode ser quebrada, seu
chamado em acordo com seu propósito não pode ser revogado. Nem o mérito, a
intercessão e a preservação de Cristo podem ser invalidados, e a selagem do
Espírito tão pouco pode ser frustrada ou destruída.
9. Os crentes podem estar certos e
estão certos desta preservação dos eleitos para salvação e da perserverança dos
verdadeiros crentes na fé. Esta certeza é de acordo com a medida de sua fé,
pela qual eles crêem com certeza que são e permanecerão verdadeiros e vivos
membros da Igreja, e que têm o perdão de pecados e a vida eterna.
10. Esta certeza não vem de uma
revelação especial, sem ou fora da Palavra, mas vem da fé nas promessas de
Deus, que Ele revelou abundantemente em sua Palavra para nossa consolação. Vem
também do testemunho do Espírito Santo, testificando com o nosso espírito de
que somos filhos e herdeiros de Deus; e finalmente, vem do zelo sério e santo
por uma boa consciência e por boas obras. E se os eleitos não tivessem neste
mundo a sólida consolação de obter a vitória e esta garantia infalível da
glória eterna, seriam os mais miseráveis de todos os homens (Rom 8:16,17).
11. No entanto, a Escritura testifica
que os crentes nesta vida têm de lutar contra várias dúvidas da carne e,
sujeitos a graves tentações, nem sempre sentem plenamente esta confiança da fé
e certeza da perseverança. Mas Deus, que é Pai de toda a consolação, não os
deixa ser tentados além de suas forças, mas com a tentação proverá também o
livramento e pelo Espírito Santo novamente revive neles a certeza da
perseverança (I Cor. 10:13).
12. Entretanto, esta certeza de perseverança
não faz de maneira nenhuma que os verdadeiros crentes se orgulhem e se
acomodem. Ao contrário, ela é a verdadeira raiz da humildade, reverência
filial, verdadeira piedade, paciência em toda luta, orações fervorosas, firmeza
em carregar a cruz e confessar a verdade e alegria sólida em Deus. Além do
mais, a reflexão deste benefício é para eles um estímulo para praticar séria e
constantemente a gratidão e as boas obras, como é evidente nos testemunhos da
Escritura e nos exemplos dos santos.
13. Quando pessoas são levantadas de
uma queda (no pecado) começa a reviver a confiança na perseverança. Isto não
produz descuido ou negligência na piedade delas. Em vez disto produz maior
cuidado e diligência para guardar os caminhos do Senhor, já preparados, para que,
andando neles, possam preservar a certeza da perseverança. Quando fazem isto o
Deus reconciliado não retira de novo sua face delas por causa do abuso da sua
bondade paternal (a contemplação dela é para os piedosos mais doce que a vida e
sua retirada mais amarga que a morte), e elas não cairão em tormentos mais
graves da alma (Ef. 2:10).
14. Tal como agradou a Deus iniciar sua
obra da graça em nós pela pregação do evangelho, assim Ele a mantém, continua e
aperfeiçoa pelo ouvir e ler do Evangelho, pelo meditar nele, pelas suas
exortações, ameaças, e promessas, e pelo uso dos sacramentos.
15. Deus revelou abundantemente em sua
Palavra esta doutrina da perseverança dos verdadeiros crentes e santos, e da
certeza dela, para a glória do seu Nome e para a consolação dos piedosos. Ele a
imprime nos corações dos crentes, mas a carne não pode entendê-la. Satanás a
odeia, o mundo zomba dela, os ignorantes e hipócritas dela abusam, e os
heréticos a ela se opõem. A Noiva de Cristo, entretanto, sempre tem-na amado
ternamente e defendido constantemente como um tesouro de inestimável valor.
Deus, contra quem nenhum plano pode se valer e nenhuma força pode prevalecer,
cuidará para que a Igreja possa continuar fazendo isso. Ao único Deus, Pai,
Filho e Espírito Santo, sejam a honra e a glória para sempre. Amém!
REJEIÇÃO DE ERROS
Havendo explicado a doutrina ortodoxa, o Sínodo rejeita os seguintes erros:
Erro 1 - A perseverança dos verdadeiros
crentes não é resultado da eleição ou um dom de Deus obtido pela morte de
Cristo. É uma condição da nova aliança, que o homem deve cumprir pela sua livre
vontade antes da assim chamada eleição decisiva, e justificação.
Refutação - A Escritura Sagrada
testifica que a perseverança provém da eleição e é dada aos eleitos pelo poder
da morte, ressurreição e intercessão de Cristo: "a eleição o alcançou; e
os mais foram endurecidos" (Rom 11:7). Também: "Aquele que não poupou
a seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura não nos dará
graciosamente com Ele todas as coisas? Quem intentará acusação contra os
eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo quem
morreu, ou antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus, e também
intercede por nós. Quem nos separará do amor de Cristo?" (Rom 8:32-35)
Erro 2 - Deus de fato provê os crentes
de suficientes forças para perseverar, e está pronto para preservar tais forças
nele, se este cumprir seu dever; mas ainda que todas estas coisas tenham sido
estabelecidas, que são necessárias para perseverar na fé e que Deus usa para
preservar a fé, ainda assim dependerá da vontade humana se perseverar ou não.
Refutação - Esta idéia é abertamente
pelagiana. Enquanto deseja libertar o homem, o faz usurpador da honra de Deus.
Combate o consenso geral da doutrina evangélica que retira do homem todo motivo
de orgulho e atribui todo louvor por este benefício somente à graça de Deus. É
também contrário ao apóstolo que declara: "...o qual também vos confirmará
até ao fim, para serdes irrepreensíveis no dia de nosso Senhor Jesus Cristo"
(1 Cor 1:8).
Erro 3 - Crentes verdadeiramente
regenerados não só podem perder completa e definitivamente a fé justificadora,
a graça e a salvação, mas de fato as perdem freqüentemente e assim se perdem
eternamente.
Refutação - Esta opinião invalida a graça,
justificação, regeneração e contínua preservação por Cristo. Ela é contrária às
palavras expressas do apóstolo Paulo: "Mas Deus prova o seu próprio amor
para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda
pecadores. Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos
por ele salvos da ira" (Rom 5:8,9). É contrária ao apóstolo João:
"Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática do pecado; pois o
que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando porque
é nascido de Deus" (1 Jo 3:9). Também é contrária às palavras de Jesus
Cristo: "Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, eternamente, e
ninguém as arrebatará da minha mão. Aquilo que meu Pai me deu é maior do que
tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar" (Jo 10:28,29).
Erro 4 - Verdadeiros crentes
regenerados podem cometer o pecado que leva à morte ou o pecado contra o
Espírito Santo.
Refutação - Após o apóstolo João ter
falado no 5º capítulo de sua 1ª carta, versos 16 e 17, sobre aqueles que pecam
para morte e de ter proibido de orar por eles, logo acrescenta no verso 18:
"Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não vive em pecado, antes,
Aquele que nasceu de Deus o guarda, e o maligno não lhe toca."
Erro 5 - Sem uma revelação especial não
podemos ter nesta vida, nenhuma certeza da perseverança futura.
Refutação - Por tal doutrina o seguro
consolo dos crentes verdadeiros nesta vida é tirado, e as dúvidas dos
seguidores do papa são novamente introduzidas na igreja. As Escrituras Sagradas,
entretanto, sempre deduzem esta segurança, não a partir de uma revelação
especial e extraordinária, mas a partir das marcas dos filhos de Deus e das
promessas mui firmes dEle. Especialmente o apóstolo Paulo ensina
isto:"...nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus
que há em Cristo Jesus nosso Senhor" (Rom 8:39). E João escreve: "E
aquele que guarda os seus mandamentos permanece em Deus, e Deus nele. E nisto
conhecemos que Ele permanece em nós, pelo Espírito que nos deu" (1 Jo 3:24).
Erro 6 - Por sua própria natureza a
doutrina da certeza da perseverança e da salvação causa falsa segurança e
prejudica a piedade, os bons costumes, orações e outros santos exercícios. Ao
contrário, é louvável duvidar desta certeza.
Refutação - Esta falsa doutrina ignora
o efetivo poder da graça de Deus e a operação do Santo Espírito, que habita em
nós. Contradiz o apóstolo João que, em palavras explícitas, ensina o contrário:
"Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que
havemos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a
ele; porque havemos de vê-Lo como ele é. E a si mesmo se purifica todo o que
nele tem esta esperança, como ele é puro." (1 Jo 3:2,3) Ainda mais, ela é
refutada pelos exemplos dos santos tanto no Antigo como no Novo Testamento,
que, não obstante estarem certos de sua perseverança e salvação, continuaram em
oração e outros exercícios de piedade.
Erro 7 - A fé daqueles que crêem apenas
por um tempo não é diferente da fé justificadora e salvadora, a não ser com
respeito à sua duração.
Refutação - Em Mt 13:20-23 e Lc 8:13-15
Cristo mesmo indica claramente, além da duração, uma tríplice diferença entre
os que crêem só por um tempo e os verdadeiros crentes. Ele declara que o
primeiro recebe a semente em terra rochosa, mas o último em bom solo, ou seja,
em bom coração; que o primeiro é sem raiz, mas o último tem firme raiz; que o
primeiro não tem fruto, mas o último produz fruto em várias medidas, constante
e perseverantemente.
Erro 8 - Não é absurdo o fato de
alguém, tendo perdido sua primeira regeneração, nascer de novo e mesmo
freqüentemente nascer de novo.
Refutação - Esta doutrina nega que a
semente de Deus, pela qual somos nascidos de novo, seja incorruptível. Isto é
contrário ao testemunho do apóstolo Pedro: "...pois fostes regenerados,
não de semente corruptível, mas de incorruptível..." (I Ped. 1:23).
Erro 9 - Cristo em lugar algum orou
para que os crentes perseverassem infalivelmente na fé.
Refutação - Isto contradiz ao próprio
Cristo, que diz: "Eu, porém, roguei por ti" (Pedro) "para que a
tua fé não desfaleça." (Lc 22:32). Também contradiz o apóstolo João que
declara que Cristo não orava somente pelos apóstolos, mas também por todos
aqueles que viessem a crer por meio da palavra deles: "Pai Santo,
guarda-os em teu nome, que me deste...Não peço que os tires do mundo; e, sim,
que os guardes do mal." (Jo 17:11,15).
CONCLUSÃO
Esta é a declaração clara, simples, e
sincera da doutrina ortodoxa com respeito aos Cinco Artigos de Fé disputados na
Holanda; e esta é a rejeição dos erros pelos quais as Igrejas têm sido
perturbadas, por algum tempo. O Sínodo de Dort julga a
presente declaração e as rejeições serem tiradas da Palavra de Deus e conforme
as Confissões das Igrejas Reformadas. Assim torna-se evidente que alguns agiram
muito impropriamente e contrário à toda verdade, equidade e amor, desejando
persuadir o povo do seguinte:
- A doutrina das Igrejas Reformadas com
relação à predestinação e assuntos relacionados com ela, por seu caráter e
tendência, desvia os corações dos homens da verdadeira religião.
- Ela é um ópio do diabo para a carne,
bem como uma fortaleza para Satanás, onde permanece à espera por todos, fere
multidões atingindo mortalmente a muitos com os dardos tanto de desespero
quanto de falsa segurança.
- Faz de Deus o autor injusto do
pecado, um tirano e hipócrita; é nada mais do que um renovado Estoicismo,
Maniqueísmo, Libertinismo e Islamismo.
- Conduz a um pecaminoso descuido
porque faz as pessoas crer que nada pode impedir a salvação dos eleitos, não
importando como vivam, e que portanto podem, tranqüilamente, cometer os crimes
mais horríveis. Por outro lado, se os reprovados tivessem produzido todas as
obras dos santos, isto não poderia nem ao menos contribuir para a salvação deles.
- A mesma doutrina ensina que Deus tem
predestinado e criado a maior parte da humanidade para a condenação eterna só
por um ato arbitrário de sua vontade sem levar em conta qualquer pecado.
- Da mesma maneira pela qual a eleição
é a fonte e a causa da fé e boas obras, a reprovação é a causa da incredulidade
e impiedade.
- Muitos filhos inocentes de pais
crentes são arrancados do seio de suas mães e, tiranicamente lançados no
inferno, de tal modo que nem o sangue de Cristo, nem o batismo nem as orações
da Igreja no ato do batismo lhes podem ser proveitosos.
Há muitas outras coisas semelhantes que
as Igrejas Reformadas não apenas não confessam mas também repelem de todo
coração.
Portanto, este Sínodo de Dort conclama
em nome do Senhor a todos os que piedosamente invocam o nosso Salvador Jesus
Cristo, que não julguem a fé das Igrejas Reformadas a partir das calúnias
juntadas daqui e dali, nem tão pouco a partir de declarações pessoais de alguns
professores, modernos ou antigos, que muitas vezes são citadas em má fé,
distorcidas e explicadas de forma oposta ao seu sentido real.
Mas deve-se julgar a fé das Igrejas
Reformadas pelas Confissões públicas destas Igrejas, e pela presente declaração
da ortodoxa doutrina, confirmada pelo consenso unânime de cada um dos membros
de todo o Sínodo.
Além do mais, o Sínodo adverte os
caluniosos para que considerem o severo julgamento de Deus à espera deles, por
falar falso testemunho contra tantas igrejas e contra as Confissões delas, e
por conturbar as consciências dos fracos e por tentar colocar em suspeito, aos
olhos de muitos, a comunidade dos verdadeiros crentes.
Finalmente, este Sínodo exorta todos os
conservos no evangelho de Cristo a comportar-se em santo temor e piedade diante
de Deus, quando lidarem com esta doutrina em escolas e igrejas.
Ao ensiná-la, tanto pela palavra falada
quanto escrita, devem procurar a glória de Deus, a santidade de vida, e a
consolação das almas aflitas. Seus pensamentos e palavras sobre a doutrina
devem estar em concordância com a Escritura, de acordo com a analogia da fé. E
devem abster-se de usar qualquer frase que exceda os limites prescritos pelo
genuíno sentido das Escrituras
Sagradas para não dar aos frívolos
sofistas boas oportunidades para atacar ou caluniar a doutrina das Igrejas
Reformadas.
Que o Senhor Jesus Cristo, o Filho de
Deus, o qual está sentado à direita do Pai e envia seus dons aos homens, nos
santifique na verdade. Que Ele traga à verdade os que se desviaram dela, cale a
boca dos caluniosos da sã doutrina e equipe os ministros fiéis da sua Palavra
com o Espírito de sabedoria e discrição, para que tudo que falem possa ser para
a glória de Deus e a edificação dos ouvintes. Amém.
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