As Gêneses do Gênesis
Apreciação da estrutura e da teologia
do primeiro livro do Cânon Veterotestamentário.
I. Introdução
Gênesis (palavra grega que significa origem) é o nome dado pelos tradutores da Septuaginta (versão grega do Antigo
Testamento, conhecida como LXX) ao primeiro livro da Bíblia. Na Bíblia
Hebraica, o livro de Gênesis (que está nessa mesma ordem, sendo o primeiro – o
que não acontece com outros como Malaquias, por exemplo, que não é o último
como nas nossas Bíblias) recebe como título a primeira palavra do livro: “No princípio” (bereshith). Nele, temos o relato da origem do Universo e
do ser humano, da obra criativa de Deus, da drástica queda do homem, contendo
biografias que tecem a origem do povo de Deus.
Gênesis possui uma extensão histórica que
começa com a criação do Universo e do homem e termina com a morte de José,
filho de Jacó. Geograficamente, o livro abrange desde o vale da
Mesopotâmia, o “berço” da raça humana, até o vale do Nilo no Egito, o “berço”
da raça hebraica. Essa área, com uma configuração crescente, é conhecida
e chamada de “Crescente Fértil”.
O fato mais antigo do Gênesis, a criação,
conforme cálculo feito pelo rabino José ben Halafta em cerca de 125 d.C., é
remontado ao ano 3.760 a.C. (Louis Finkelstein, “The Jews” – Os Judeus –
Vol II, p. 1786). Porém, o Arcebispo James Ussher, data a criação em
4.004 a.C. Já mais recentemente, Stanley A. Ellisen estruturou a cronologia de Gênesis a partir de 4.173 a.C. Tal variedade
de sistemas cronológicos deve-se a questões exegéticas, das quais não temos
tempo para tratar aqui e nem seriam relevantes para nossa reflexão.
II. Estrutura de Gênesis
O material literário de Gênesis está acomodado em dez partes ou seções, que são introduzidas pela
palavra hebraica tôledôt, traduzida como
“história das origens” ou “descendentes” ou “gênese” ou “genealogia” etc. Com
exceção do primeiro relato, que é o das “origens do céu e da terra”, os outros
nove levam o nome das pessoas, contando suas histórias subseqüentes, sem se preocupar
necessariamente com a origem das mesmas. Derek Kidner diz que essa
expressão em Gênesis sempre visa o futuro, introduzindo um novo estágio do livro.
Contudo, P.J. Wiseman argumenta que é sempre uma conclusão. Não se deve
ser tão rígido nesta questão, pois tôledôt pode ser aplicável em Gênesis tanto ao passado (parece ser o caso de 2.4) quanto ao futuro (parece
provocar menos anomalia nos outros nove casos).
Trata-se de pequenas histórias, que às vezes se estendem em função de detalhes
como no caso da de Jacó expressa em José que ocupa desde o capítulo 37 até o
50. Essas histórias são de pessoas que fazem parte de famílias que, num
dado momento histórico, obtém a atenção do relato revestindo-se de importância
no meio em que estão vivendo por estarem também inseridas no programa histórico
da aliança divina. No entanto, essa diversidade de relatos não deve
ofuscar nossa visão com respeito à unidade do livro. Observar essa estrutura
com base no tôledôt é útil para a correta interpretação doGênesis, pois revela o
“desenho do texto”, mas não se deve desprezar o todo composto por essas
partes. Portanto, vamos a elas:
1. A Gênese dos céus e da terra:
A expressão aparece a em 2.4 e o relato vai até
4.26. Se partirmos do pressuposto de que tôledôtpode ser flexível
entre introdução e conclusão, essa parte começa em 1.1. Essa porção
narrativa descreve a criação do Universo em seis dias, a formação do homem e,
posteriormente, da mulher. O capítulo 3 revela como o mal, na figura da
serpente sagaz, entrou na criação de Deus e tentou o homem a se rebelar contra
a vontade do Criador. O capítulo 4 demonstra como a maldade se espalhou
rapidamente a ponto de Caim e Abel, os dois irmãos filhos de Adão e Eva,
travarem um conflito que culminou com o assassinato de Abel. Não se deve deixar
de notar que essa parte termina informando que “nessa época começou-se a
invocar o nome do Senhor” (4.26 – conforme tradução da NVI).
2. A Gênese de Adão:
Essa parte vai desde 5.1 (introduzido com a expressão tôledôt) até 6.8, traçando as gerações desde Adão até
Noé. Um tema notável desse relato é a “morte”, pois todos os homens aqui
nomeados morreram, com exceção de um que “andou com Deus”: Enoque
(5.22-24). O desfecho do relato registra a corrupção na qual
gradativamente os descendentes de Sete se envolveram. É a maldade inicial
que continua a se expandir. O mal incipiente foi encontrando recipiente
favorável para se proliferar. Todavia, em 6.8, Noé é apontado como um que achou
graça diante de Deus!
3. A Gênese de Noé:
Começando em 6.9 (tôledôt) até
9.29, esse relato nos dá uma dupla e surpreendente mensagem concernente à
justiça e a graça de Deus. Fora da Arca o dilúvio destruía toda vida, mas
dentro da Arca uma família era preservada, porque “Noé andava com Deus”
(6.9). O mesmo dilúvio universal, que trouxe o juízo divino sobre o
pecado e a dura incredulidade, revelou também a graça de Deus ao salvar da
morte e da destruição a Arca com sua carga preciosa: um homem, acompanhado de
sua família, que alcançou graça diante de Deus.
4. A Gênese dos filhos de Noé:
Com início em 10.1 (tôledôt) e
se estendendo até 11.19, descreve a distribuição dos três filhos de Noé em
várias nações e idiomas. Este quadro examina o mundo das nações que foram
conhecidas do antigo Israel. Aquelas nações que o povo escolhido de Deus teve
maior contato são descritas com detalhes. Concluindo esse relato, aparece
a dispersão em Babel demonstrando que aqueles que buscaram sua própria glória
em lugar de glorificar o nome de Iahweh (Javé) caíram outra vez no juízo de Deus.
5. A Gênese de Sem:
Esse curto relato que vai de 11.10 (tôledôt) ao verso 26,
traz a genealogia de Sem a Terá, pai de Abrão. Sua importância está fora
dele mesmo e se dá ao apontar para a origem do pai de Abrão e fazer a ligação
deste com Sem e, conseqüentemente, com Noé e sua ascendência. Abrão será uma
figura importante no relato seguinte de Gênesis e colocá-lo em “cena” sem revelar seu “berço” seria a criação de um
hiato na história dos patriarcas.
6. A Gênese de Terá:
Constitui um dos maiores relatos, ocupando o
espaço entre 11.27 (tôledôt) e 25.11, cobrindo quase um
quarto do livro de Gênesis. Registra a
história da escolha de Abrão e da promessa feita a ele de que seria uma grande
nação. Abraão é desafiado a confiar completamente na promessa de Deus,
mas concorda com Sara, sua esposa, e tem um filho com Hagar – a quem chama
Ismael – por causa da aparente demora de Deus em cumprir sua promessa. Dentro
desse relato há a descrição do nascimento de Isaque e da prova a qual Deus
submeteu Abraão, pedindo-lhe que lhe oferecesse seu filho em sacrifício (Gn 22).
O relato encerra-se com a morte do agora chamado “Abraão” demonstrando que,
após sua morte, a promessa da benção é passada ao seu filho Isaque (25.11).
7. A Gênese de Ismael:
Um curto relato de 25.12 (tôledôt)
a 25.18; na verdade, o mais curto dos dez relatos. O verso 12 deixa claro
que este filho de Abraão é com Hagar “a serva egípcia de Sara”.
Trata-se de uma linha secundária na história da graça salvadora de Iahweh. Esses sete versículos documentam como Deus cumpriu a sua
promessa de que multiplicaria a descendência de Ismael (cf. 16.10).
8. A Gênese de Isaque:
Razoavelmente extenso esse relato, que se inicia
em 25.19 (tôledôt) e se estende até 35.19, apresenta as
gerações que se seguiram a Abraão, através da família de Isaque. Diferente
de seu ilustre pai, Isaque foi de uma natureza tranqüila e introvertida e sua
esposa, Rebeca, embora estéril fora agraciada com filhos gêmeos: Esaú e
Jacó. Desde antes do nascimento, o relato aponta para um conflito
existente entre eles. No desenrolar da história (de uma forma intrigante
e atraente), Jacó – que seria o mais novo, pois nascera minutos após Esaú –
obtém o direito de primogenitura e a benção de Isaque, tendo seu nome trocado
para Israel.
9. Gênese de Esaú:
Esse relato que começa em 36.1 (tôledôt) e se encerra em
37.1, concentra sua atenção nos descendentes de Esaú e, aparentemente, quer
justificar a existência de Edom ao revelar a origem deste povo vizinho de
Israel, que reaparecerá em outras partes da literatura do Antigo Testamento.
10. Gênese de Jacó:
Este é o último e o maior de todos os relatos. Começa em 37.2 (tôledôt)
e vai até o último versículo deGênesis em 50.26. A
história é de Jacó, mas quem ocupa boa parte da cena (quase toda!) é José, um
de seus doze filhos. Este é o registro da forma misteriosa como Deus usou
a maldade dos irmãos de José para levar adiante seu plano para a nação que
havia escolhido e que paulatinamente vai surgindo no cenário da história.
Aqui se tem a explicação de como o povo de Deus se estabeleceu no Egito e arma
o cenário para o livro do Êxodo.
III. Teologia do Gênesis
Em Gênesis encontramos material suficiente para discorrer acerca de vários pontos
da teologia sistematizada. No entanto, analisemos aqui as contribuições
de Gênesis para a Teologia Própria – Deus, a Antropologia – o homem e a
Soteriologia – a salvação.
1. Teologia Própria
O Livro do Gênesis começa apresentando Deus sem, contudo, justificar sua origem ou
existência. EmGênesis, Deus existe e o que não existe Ele vai
criar! O Livro não se propõe a responder todas as perguntas humanas
acerca do Criador, mas O revela como pessoal, enfatizando o persistente
interesse de Deus por relações pessoais com os seus servos. Ele é único,
Criador e Senhor Soberano sobre tudo o que existe. Em Gênesis a questão de outras divindades não
aparece, exceto no episódio de Labão (31.19,30,34; 35.4) onde há breves menções
à ídolos ou deuses. Ele é responsável pelas “macro-ações”, como a criação de
todas as coisas e o surgimento dos povos, mas também pelas “micro-ações” como a
concepção de uma criança ou a chamada de um seguidor. Deus é o regente
capaz de pôr em ordem as situações mais intratáveis (cf. 45.5-8), sendo juiz
amoroso cujos juízos são suavizados pela misericórdia (hesed) (cf. 3.21;
4.15; 6.8; 18.32, 19.16,21) e, às vezes, tarda para sobrevir (cf. 15.16).
Sua justiça contém amor e seu amor inclui exigência e excelência morais.
Em Gênesis, Deus é sempre
Aquele que se dá, em alguma medida. Neste livro, Ele é conhecido por muitos
nomes: Iahweh; Elohim; El. Alguns são
títulos que exprimem facetas de seu ser como Altíssimo (14.18-22), Todo-poderoso (17.1), etc. Outros comemoram um momento especial de encontro, como Deus que vê (16.13), Deus de Israel (33.20), Deus de Betel (35.7). Ainda outros declaram
uma idéia de relação como Deus de Abraão (28.13); Temor de Isaque (31.42, 53), Poderoso de Jacó (49.24).
2. Antropologia:
Gênesis apresenta a formação do homem, sua
vocação, sua queda e sua situação em conseqüência da queda. Na literatura
de Gênesis o homem é um ser social que vive dentro de certo padrão de
responsabilidade, isto é: na dimensão das coisas – onde seu dever é cultivar e guardar seu meio ambiente imediato e
dominar e encher a terra; na dimensão das pessoas – onde o companheirismo é visto como uma necessidade primária do homem e
alvo da atenção de Deus ao prover companhia complementar para o homem, bem como
demonstrar as relações familiares ameaçadas por tensões motivadas pelo egoísmo
e inveja; e na dimensão da autoridade – onde a responsabilidade de governar confiada ao homem tem por
finalidade a ordem e o bom andamento de todas as coisas.
3. Soteriologia:
Gênesis aponta a graça que,
longe de ser mera resposta ao pecado, é fundamental para a própria
criação. A entrada do pecado põe em cena muitos aspectos da graça, ao
revelar os meios e os modos que Deus se utilizou para preservar a humanidade e
levar certos homens a entrarem em aliança com Ele, por meio dos quais
abençoaria finalmente o mundo todo (cf. 18.18). Deus, em Gênesis, restringe a corrupção e a anarquia produzidas pelo pecado, como no
caso do dilúvio, da Torre de Babel e na decadência de Sodoma. Num livro
considerado tão antigo e com características primitivas, a obra salvadora de
Deus não é menos completa nem menos variada. É Ele, e não o homem, quem
busca. Aquela expressão pós queda “Adão, onde estás” (3.9) ecoa
por todo o livro. A salvação é muito mais que simples aceitação, é uma
intimidade com o céu, de matizes tão variados como os personagens que a
desfrutam; uma relação assumida e firmada numa aliança, na qual Deus prometia
ser o Deus da descendência deles.
IV. A Relevância de Gênesis para o Corpo Literário Neo e
Veterotestamentário
O relato de Gênesis é de extrema relevância para a compreensão do Antigo e Novo
Testamentos. Há contribuições singulares como as que se seguem:
1. A apresentação de Deus como Soberano:
Deus é o criador e nada revela sobre sua
origem ou passado, apenas surge da eternidade misteriosa para iniciar a sua
obra de criação. A soberania de Deus é uma grande tônica no livro.
2. Um registro específico das Origens:
Embora se tenha encontrado documentos antigos com
vagos relatos sobre a criação do homem, nenhum deles, remotamente, pode ser
comparado ao registro simples, específico e majestoso doGênesis.
Sem esse registro não teríamos uma visão objetiva de como o mundo começou, de
como as várias formas de vida tiveram seu início, da verdadeira origem do
homem, de como entrou o pecado na história da humanidade, de como as várias
raças foram formadas e por que os idiomas são variados.
3. O Pecado original:
Gênesis demonstra
claramente que Deus não criou o pecado e o mal, e o pecado não ficou inativo
nem permaneceu apenas como um defeito de menor importância. O livro
descreve como o pecado foi se multiplicando e o resultado descrito em 6.11-12 é
demonstrado em vidas e famílias no decorrer do relato (cf. 19.31-36 – as filhas
de Ló).
4. Julgamentos sobrenaturais:
A revelação de Deus como justo juiz em Gênesis é indiscutivelmente relevante para as
Teologias veterotestamentária e neotestamentária.Os vários julgamentos, como a
maldição após a queda, o dilúvio, a confusão de idiomas em Babel, a destruição
de Sodoma e Gomorra, retratam a intolerância de Deus para com o pecado e a
rebelião.
5. O proto-evangelho:
A promessa divina de redenção descrita em 3.15 é uma descrição resumida do
plano divino para resgatar a humanidade. Isso é plenamente compreendido
no Novo Testamento, onde entendemos que a vinda de Jesus não é um “arranjo”
divino para uma situação que fugiu do seu controle, mas o cumprimento de
promessas tão primevas quanto a criação do próprio homem.
6. O conceito de Aliança:
A Chamada aliança Abraâmica é a base de todo o
programa divino para a humanidade e reportam-se a ela vários autores da
literatura canônica. Traria sérias dificuldades à exegese das outras alianças
descritas nos relatos bíblicos se houvesse a inexistência do relato desta
aliança.
7. Cristologia:
Ainda que veladas à mente secular, há referências cristológicas sutis no relato
do Gênesis. A
referência ao descendente da mulher (3.15), a semente de Abraão (12.3) e a um
“Leão” da tribo de Judá (49.9-10) apontam para o Jesus do Novo Testamento, além
das referências ao Anjo do Senhor que precisam ser intensamente estudadas e
analisadas para ser corretamente identificadas como manifestações de Deus na
terra, o que confirmaria o Jesus pré-existente (ou pré-encarnado).
Assim sendo, Gênesis constitui-se de suma importância para o estudo das Escrituras Sagradas
em função de suas informações cósmicas, étnicas, históricas, religiosas e
proféticas.
____________________________
Referências Bibliográficas:
ELLISEN, Stanley A. “Conheça Melhor o Antigo Testamento” – Editora Vida,
São Paulo.SP, 1991. 371p.
JESKE, John C. “Gênesis” – Editorial Northwestern, Milwaukee, Wisconsin
USA, 1996. 402 p.
KIDNER, Derek “Gênesis: Introdução e Comentário” – Edições Vida Nova e
Mundo Cristão, São Paulo.SP, 1991. 208p.
RAD, Gerhard Von. “Gênesis: A Commentary” – SCM Press LTD. USA, 1972. 440
p.
SCHMIDT, Werner H. “Introdução ao Antigo Testamento” – Editora Sinodal,
São Leopoldo.RS, 1994. 395p.
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