MISSIONÁRIO:
Maluco, Mártir, Mendigo ou
o Quê?
A igreja evangélica brasileira em poucas décadas
transformou-se de campo missionário em “celeiro de missões”. Como a igreja está
assumindo e tratando seus missionários?
MALUCO?
Fui convidada para falar sobre missões numa igreja bem viva
e dinâmica. A família que me hospedou não se cansava de ouvir minhas
experiências missionárias. Até que, de repente, a filha que estava para
terminar o curso de medicina começou a mostrar que estava seriamente
considerando a possibilidade de servir na obra missionária.
O ambiente mudou
totalmente; Isso seria uma loucura! Muitos cristãos ainda consideram o
missionário basicamente um maluco. Como é que uma pessoa de boa formação ou com
responsabilidades dentro da família abandona tudo e todos para embrenhar-se em
alguma selva entre povos tribais ou para confrontar situações de alto risco em
países resistentes, onde há falta de segurança e de confortos básicos? –
Missionários solteiros, tudo bem (desde que não seja meu irmão ou minha filha),
mas um casal com filhos é o cúmulo do absurdo! É claro que Deus não pediria uma
coisa dessas para seus filhos!, é o pensamento de muitos. Será que Deus não
pediria? O que lhe custou o seu projeto missionário? A Bíblia afirma que se
trata de uma loucura de Deus: uma loucura poderosa para salvar e transformar
vidas humanas. Graças a Deus pelos que aceitam ser “os malucos de Deus” (1Co 1:
21-29) Mas isso significa uma atitude irresponsável da parte do missionário? Ou
da Igreja? Infelizmente, muitas vezes tem sido! E aí já abandonamos a categoria
da loucura segundo Deus para uma loucura humana, irresponsável. Isso acontece
quando o missionário é enviado com um espírito ufanista, sem o preparo
espiritual, bíblico, missiológico e pastoral adequado. Quando ele ou sua igreja
se sentem auto-suficientes, não precisam de ajuda ou orientação, nem de
missionários mais experientes, nem de líderes cristãos nacionais. Assim, o
missionário é enviado para ser benção, mas nem sempre será. Mas existe outra
irresponsabilidade ou loucura injustificável e pecaminosa que nossas igrejas
têm praticado. Enviam o missionário com a benção da igreja, que se orgulha em
divulgar que sustenta “X” missionários. Mas, de repente, surge um projeto de
construção ou outra necessidade urgente que demanda toda a atenção.
Ora, o
missionário é pessoa de fé, Deus cuida dele e a igreja abandona seus
missionários no campo. Será que o pastor também não é homem de fé? Por que,
então, tal atitude inconseqüente? O missionário enfrenta dificuldades, às vezes
problemas de saúde, falta de recursos básicos, falta de explicações e
comunicação, dívidas. Como resultado, surge uma profunda crise. Às vezes
trata-se de uma pessoa que se adaptou bem ao campo, progrediu no estudo da
língua nacional, relacionou-se bem com os nacionais e acaba sendo derrotada por
esse abandono! Gostamos de falar em guerra espiritual, mas abandonamos nossa
tropa de elite, nossos comandos no campo de batalha, sem orientação, sem
recursos, às vezes feridos, sem qualquer cuidado! Nenhum exército humano faria
isso. Outra manifestação dessa inconsistência acontece no momento em que o
missionário põe os pés de volta no Brasil: Voltou do campo? Deixou de ser
missionário. Acabou o sustento! Um tremendo contraste com empresas e governos,
que enviam funcionários para servir em outras culturas ou situações de risco, e
sempre oferecem uma série de compensações. Mas, no caso dos nossos
missionários, se o sustento não acaba por completo, geralmente diminui
consideravelmente, afinal “o missionário é uma pessoa simples, chamada para
sofrer”… Não nego que muitos sejam chamados para sofrer. Mas esse sofrimento
não deveria ser causado pela igreja que o envia e sustenta, mas pelas condições
do contexto de vida do local onde trabalha. É triste saber que missionários
brasileiros voltam prematuramente do campo muito mais por causa da falta de
preparo, de sustento e de apoio pastoral adequados, e por problemas de
relacionamento com os que os enviam, do que por problemas de ministérios ou de
relacionamento com as pessoas a quem servem, mesmo em países considerados de
alto risco.
MÁRTIR?
Missionário?! Para mim é um ser muito mais santo, uma pessoa
chamada para sofrer. É alguém que não se preocupa com as coisas do mundo,
despojado. Um verdadeiro mártir! É assim que muitos vêem o missionário. Um
ideal que pode ser admirado e colocado num pedestal, não um modelo para ser
seguido. E é claro que uma pessoa que está no pedestal não precisa de minha
ajuda e compreensão. Está ali para ser admirada (ou apedrejada). Muitos
missionários voltam dos campos emocionalmente exaustos, confusos, quebrantados,
precisando muito de um tempo de renovação, cuidado e repouso. Mas são recebidos
ou como heróis, como um programa lotado de compromissos, ou sem nenhuma
atenção. A igreja deveria ser a família onde fossem recebidos com amor,
carinho, cuidado, interesse neles como pessoas e não só no trabalho que
realizam. Há cristãos que, quando ouvem relatos de crises tremendas ou
encontram o missionário doente, magro e exausto, aplaudem: Esse é um verdadeiro
missionário! Mas, quando o mesmo missionário passa por uma fase mais tranqüila,
facilmente surgem críticas e desconfianças: Ele fica viajando por aí com nosso
dinheiro… Que trabalho realmente está fazendo? Parece até que está passando
muito bem! O que significa mártir? Vem da palavra “ser testemunha”, “dar
testemunho”. Mas aí o martírio não é privilégio só de missionários, e sim de
todo cristão verdadeiro…
O que vemos na igreja primitiva? Certamente houve
alguns mártires que morreram pelo seu testemunho. Mas a maioria deles recebia
vários tipos de apoio de igrejas e irmãos, e não buscava o sofrimento. Este
vinha sem ser convidado, muitas vezes inspirado, e era enfrentado com fé e
coragem pelos discípulos de Jesus, que até se sentiam honrados por sofrerem
pelo seu nome. Será que estou defendendo a volta de uma busca do martírio? Não!
Mas se não estamos dispostos a encarar seriamente essa possibilidade como
conseqüência de nosso ministério em situações de crise, teremos de abandonar
muitos dos campos missionários mais carentes. No século 19, muitos missionários
iam ao continente africano sabendo que havia um alto risco para suas vidas.
Oitenta por cento morriam de malária, doença que ainda tem matado alguns jovens
missionários brasileiros na África. Isso é doloroso, mas não significa o fim de
nossa responsabilidade. Mais difícil é a situação em muitos países, onde o
fundamentalismo religioso vê o cristão como ameaça à sua cultura, família ou
nação. Tem havido muitos martírios, a maioria de simples cristãos nacionais,
dispostos a arriscar suas vidas no seu testemunho (martírio), muitas vezes
sobrevivendo com salários ínfimos.
MENDIGO?
Ainda outros vêem o missionário como mendigo: Na minha
igreja, missionário não prega! Um visitante estrangeiro, a quem um pastor foi
constrangido a ceder o púlpito, transmitiu a mensagem de Deus e, para surpresa
do pastor preconceituoso, não pediu nada. Não estava ali para pedir. Podemos
perguntar mais uma vez: por que o pastor é digno de salário decente, plano de
saúde, auxílio para transporte, etc., e o missionário é obrigado a “pedir
esmolas” para o seus sustento? Pessoalmente, dou graças a Deus porque nunca
precisei pedir pelo meu sustento. Os próprios líderes da Missão escreveram
algumas cartas e igrejas e irmãos se manifestaram com boa disposição para
ajudar no meu sustento, muitas vezes fontes inesperadas e fiéis. Nunca faltou
nada. Mas o missionário que é convidado para se apresentar com carta de sua
agência missionária com vistas a levantar sustento para o seu ministério não
deveria se sentir e muito menos ser tratado como mendigo. Ele não é um
peregrino solitário, mas um enviado, um embaixador, em primeiro lugar de Jesus
Cristo, mas também da igreja. Missões é sempre um ministério participativo,
nunca uma tarefa isolada de um excêntrico. Conheci uma missionária que, depois
de vários anos de ministério frutífero no exterior, passou um tempo no Brasil
para mais treinamento. Ela sofria com dor de dente, mas não tinha coragem de
compartilhar essa necessidade com sua igreja, com medo de ouvir: “Lá vem nossa
missionária pedir de novo!” A igreja deveria providenciar este e outros
cuidados naturalmente, livrando seus missionários de tal constrangimento. Por
outro lado, a igreja não deve ser ingênua, como muitas vezes tem se mostrado.
Há missionários com boa lábia, que despertam as emoções e levam as pessoas a
contribuir. Estes, nem sempre têm um bom testemunho no campo. Há outros que são
fiéis e respeitados no seu ministério: são mais humildes na apresentação e, por
isso, são esquecidos. De qualquer forma, parece ser algo extraordinário, não
normal, contribuir com o sustento missionário. A igreja deve saber também que é
muito melhor sustentar alguns, com um compromisso integral de intercessão e
cuidado pastoral, que dar esmolas a muitos. Uma igreja com coração missionário
recebe bem seu missionário que vem de férias e o ajuda a conseguir moradia,
cuidados de saúde, apoio pastoral, um lugar para descansar.
Muitas igrejas
ainda não têm essa visão. Assim, muitos missionários voltam ainda mais
arrebentados para o campo. Uma vez fui convidada insistentemente (quase
forçada) para ir numa grande reunião de senhoras de muitas congregações
diferentes. Estava com pouco tempo, mas cedi ao convite. Quando chegou o
momento para o testemunho missionário, a dirigente falou: Tem uma pessoa aqui
que veio nos pedir uma coisa. Vamos lhe dar dois minutos? Sentindo-me
humilhada, consertei: Não vim pedir nada. Fui convidada para dar um testemunho.
Se me ouvirem pelo menos cinco minutos, disponho-me a falar. Soube que, numa
grande conferência cristã na Inglaterra, alguém fez um apelo para que os
participantes guardassem os saquinhos de chá usados para doar aos missionários.
No dia seguinte, por toda parte, viam-se saquinhos secando ao sol. Por que não
pensaram em usar duas vezes o mesmo saquinho de chá e enviar saquinhos novos
para os missionários? Em várias igrejas, tenho pedido roupas e calçados usados
e literatura evangélica para ajudar os irmãos angolanos. Muitas estão dispostas
a dar, mas não a selecionar, empacotar e, muito menos, ajudar nos custos de
transporte. É sempre uma feliz surpresa quando uma igreja ou pessoa
prontificam-se não apenas a doar, mas também a enviar as doações.
OU O QUÊ?
Afinal, quem é o missionário? É um ser humano, pecador, que
comete erros, mas que foi salvo pela graça. É um ser humano vulnerável, que
vive pressões muito maiores que as de cristãos que ficam em casa, e geralmente,
têm muito menos estruturas de apoio. É um ser humano seriamente comprometido
com o reino de Deus, disposto a abrir mão de muitos confortos, segurança e
relacionamentos para obedecer ao seu chamado de amar e servir um povo
diferente. É um ser humano que precisa de pessoas que procurem compreendê-lo,
interessar-se em seus problemas, dores, projetos, sonhos e frustrações. É um
ser humano muitas vezes deslocado, desorientado, confuso, cansado, precisando
de repouso, restauração de forças e amizade sincera. O que vamos fazer com ele?
Antonia Leonora van der Meer (Tonica) foi missionária
durante dez anos em Angola e agora trabalha na formação e no cuidado pastoral
de missionários, no Centro Evangélico de Missões (CEM), em Viçosa, MG.
FONTE
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